O Dinamismo e a competência do rei inglês Henrique V
Lama. Esse é o elemento que acabou jogando a favor dos ingleses na Batalha de Agincourt, travada entre eles e os franceses em 25 de outubro de 1415. O combate aconteceu numa região próxima ao vilarejo de mesmo nome, ao norte da França. Ali estavam cerca de 24 mil franceses de um lado, contra menos de 6 mil ingleses, num lodaçal de 800 m por cerca de 2 km. Depois de ter saído vitorioso do cerco de Harfleur na Normandia, na França, realizado entre 18 de agosto e 22 de setembro do mesmo ano, o rei inglês Henrique V planejava ir diretamente para o porto de Calais, norte da França, e de lá voltar para a Inglaterra, fugindo da epidemia de disenteria que se abatia sobre a região. Mas antes precisou enfrentar com seus homens os franceses no conflito famoso em Agincourt.
A campanha já rendera dividendos políticos para o monarca inglês, então com 26 anos. Invadir a França ajudou a aumentar sua popularidade – já que ele havia prometido a seus súditos recuperar regiões perdidas aos franceses na época de Henrique II, o pai de Ricardo Coração de Leão. Vitorioso na campanha pela França até então, com a popularidade em alta, Henrique V deixou Harfleur em 8 de outubro de 1415 levando ração para os soldados para oito dias. Quando as tropas inglesas tiveram problemas para atravessar os rios, que transbordavam por causa das chuvas, começaram a ser perseguidos pelos homens de Carlos d’Albert, que substituía no campo de batalha o rei francês Carlos VI (que estava velho, enfraquecido e incapacitado para a luta). A perseguição durou seis dias. Os ingleses estavam esgotados depois de marchar cerca de 420 km em pouco mais de duas semanas. No dia 24 de outubro, Henrique V tomou uma decisão. Os ingleses não mais recuariam. O rei ordenou silêncio total à noite para a grande batalha do dia seguinte. Foi uma espera aflitiva, dramatizada por William Shakespeare na peça Henrique V anos depois.
“Ficaram tão quietos que os franceses chegaram a pensar que eles haviam levantado acampamento e fugido”, diz Roberta Magnusson, professora de história medieval da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. No amanhecer do dia 25, franceses e ingleses ficaram frente a frente, a cerca de 2 km de distância entre si. No meio, um campo recém-arado e plantado, transformado em um lamaçal pelas chuvas, que caíam forte havia duas semanas.
Batalha colossal
Henrique V colocou seus homens na tradicional formação defensiva inglesa, com cerca de 800 soldados a pé, ladeados por 5 mil arqueiros, e protegidos por grandes estacas de madeira: os cavalos inimigos recuavam instintivamente diante das madeiras pontiagudas. Detalhe curioso: como havia um surto de disenteria entre os soldados, muitos arqueiros lutavam nus da cintura para baixo para que o problema não os atrapalhasse.
Os franceses se postaram em duas linhas recheadas de soldados protegidos por armaduras e arqueiros. Os cavaleiros, entre os quais 12 nobres de sangue real, guardavam os flancos. Depois de tudo preparado, os dois lados se encararam imóveis por quase quatro horas. Ninguém queria ser o primeiro a atacar. Os ingleses por estarem em grande desvantagem numérica, e os franceses por não se animarem a se atirar no mar de lama. Pouco antes do meio-dia, os franceses mandaram alguns homens em busca de mantimentos no acampamento para um pequeno desjejum. Foi o momento em que os ingleses avançaram, numa provocação que levou ao esperado ataque francês.
Henrique V ordenou que as linhas de frente fossem assumidas por arqueiros portando arcos longos, manobra que se mostraria essencial mais tarde. Os franceses reagiram enviando seus cavaleiros, que pisotearam o campo. Mas havia lama no mínimo para cobrir o tornozelo e que, em muitas partes do terreno, chegava à altura dos joelhos e até da cintura. Existem relatos de cavalos atolados pela barriga. "Cair do cavalo em Agincourt, especialmente usando uma armadura de cerca de 35 kg, não era uma boa idéia. Muitas baixas tiveram como causa o afogamento na água lamacenta, já que os ingleses costumavam cobrir o cavaleiro caído com cadáveres, impedindo seus esforços de se levantar”, diz Magnusson. Essas barreiras de mortos, aliás, também jogaram a favor dos ingleses, que as usavam como barricadas. Somadas à lama, dificultavam ainda mais o avanço das linhas adversárias. Para complicar, todos os franceses, incluindo o condestável d’Albert, queriam ficar na linha de frente, numa demonstração de arrogância e certeza de que venceriam em Agincourt.
Essa ânsia pela iniciativa na batalha se voltou contra os franceses quando a linha de frente teve de se apertar ainda mais nos parcos 800 m do campo. “Era quase impossível levantar o braço para esticar o arco ou desferir um golpe”, diz Greg Woolf, professor de história da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Mesmo assim, as forças francesas conseguiram avançar posições. “Apesar de o soldado francês de armadura normalmente se destacar pela resistência e mobilidade, a combinação da lama com o peso da multidão que os esmagava tornou-os alvos fáceis para os inimigos. Logo a segunda linha de frente francesa também caiu”, complementa Woolf. No lado inglês, já ocorriam os procedimentos corriqueiros de batalha: saquear os mortos e fazer dos vivos prisioneiros. Havia, contudo, um entrave: o número de capturados era maior que o de captores. E os franceses cativos tinham facilidade em se armar novamente, recolhendo as armas dos mortos, e iniciar um motim.
A reação de Henrique V foi ordenar a morte de todos os prisioneiros, liberando os homens que os guardavam para continuar a luta. Essa versão, porém, é controversa porque não se deve esquecer que os reféns representavam uma soma considerável para o pagamento de futuro resgate. Na descrição de Shakespeare, a ordem foi dada depois que um destacamento de cavaleiros franceses irrompeu no flanco inglês. “Não há como saber se isso não foi uma justificativa posterior dos homens que mataram os prisioneiros e temiam a ira de seu rei pela perda de dinheiro”, afirma Alexandr Vernitsky, especialista em Idade Média da Universidade de Moscou. De qualquer forma, os prisioneiros mais valiosos – os nobres – foram poupados. Em um ponto, entretanto, os historiadores concordam: a carga de cavalaria foi a última ação da França. A batalha estava definitivamente perdida. Mesmo em grande inferioridade numérica, os ingleses de Henrique V garantiram a vitória, glorificando o uso do arco longo inglês como a peça-chave da batalha.
Fonte de controvérsias
Os números que envolvem a Batalha de Agincourt são um dos pontos que causam discordância entre os historiadores da atualidade. A tese mais aceita é que, além de Carlos d´Albert e outros integrantes da alta nobreza, mais de 1,5 mil cavaleiros e 4,5 mil soldados morreram. Alguns citam o desaparecimento de 10 mil franceses, dos quais 5 mil de sangue azul, contra 1,6 mil ingleses, incluindo o poeta e duque Charles de Orléans. Alguns historiadores, como Anne Curry, autora do livro Agincourt, a New History (sem tradução), questionam até o tamanho da desvantagem numérica entre ingleses e franceses. Segundo ela, a proporção mais correta é 12 mil franceses contra 8 mil ingleses e o resto seria um mito criado para aumentar a fama do rei Henrique V. O segundo ponto de controvérsia é a aclamada eficiência do arco inglês. Reconstituições de batalhas feitas pelo computador por diversos pesquisadores mostram resultados um pouco diferentes. Para Peter N. Jones, autor do livro The Metallography and Relative Effectiveness of Arrowheads and Armor during the Middle Ages (sem tradução), as flechas eram capazes de acertar braços e pernas, mas não teriam a mesma facilidade para se encravar no peito ou na cabeça de um guerreiro com armadura. Isso não quer dizer que o arco fosse ineficiente. Acompanhe a seguir uma HQ que mostra como foi a célebre batalha.
Arqueiro inglês (terrível muralha para os franceses)
A Inglaterra na voz do bardo
A Batalha de Agincourt provavelmente não seria tão conhecida se não fosse o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare.
Considerado um dos maiores escritores da língua inglesa, ele cobriu em suas mais de 40 obras, entre tragédias, comédias, dramas e poemas, produzidos entre 1586 e 1616, diversos períodos e eventos históricos com riqueza de detalhes. Sempre ressaltando as glórias e tragédias da vida e da história inglesa, na peça Henrique V, por exemplo, ele imortalizou o Dia de São Crispim, data em que o conflito de Agincourt foi travado, escrevendo pela boca do próprio rei inglês: “Aquele que sobreviver a esse dia e chegar à velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: ‘Amanhã é São Crispim’. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: `Recebi estas feridas no dia de São Crispim’”. O bardo, como também é conhecido, registrou ainda a vida e as guerras de diversos monarcas ingleses do período medieval: Rei João, que fala de João sem Terra, irmão de Ricardo Coração de Leão; Ricardo II, sobre o filho de Eduardo, o príncipe negro de Gales; Ricardo III, que narra o reinado de terror do último rei da casa de York; e um ciclo de peças que toma todo o período da Guerra das Rosas. Seu estilo, sempre misturando temas de apelo popular com profundidade filosófica e construção elaborada de personagens e tramas, foi traduzido para todas as línguas do planeta. A fama, porém, que só veio após o século 17, ocasionou várias especulações sobre o dramaturgo. Escritores como Mark Twain e Henry James e o psicanalista Sigmund Freud sempre colocaram em dúvida a autoria de todos os trabalhos atribuídos a Shakespeare, especialmente devido à dificuldade de encontrar registros que coloquem as obras numa linha cronológica confiável. Seus trabalhos já foram atribuídos a figuras como os ingleses Edward de Vere e Christopher Marlowe, este um poeta elizabetano que teria forjado sua morte para continuar produzindo em nome do concorrente mais famoso.
Ao fim da batalha de Agincourt...
Após a mais dramática luta da Guerra dos Cem Anos, os ingleses tiveram mais uma vitória, agora diplomática – se bem que o grande vencedor não desfrutou dela por muito tempo. Henrique V foi reconhecido como regente e herdeiro do trono francês no Tratado de Troyes, assinado em 1420, e desposou Catarina de Valois, filha de Carlos VI. O rei inglês, contudo, ão viveu para assumir o trono – morreu de disenteria aos 34 anos, dois meses antes da morte de Carlos VI. Seu filho Henrique VI, então recém-nascido, foi nomeado regente e só assumiu aos 16 anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário