sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"Água em pó" pode tornar a seca um problema do passado

Enquanto a ONU afirma que a maior parte da água usada no planeta vai para a irrigação, pesquisadores estão desenvolvendo uma série de ideias para fazer render mais a água utilizada na agricultura.
Nas últimas semanas, muitos se empolgaram com um produto que afirmam ter potencial para superar o desafio global de se cultivar em condições áridas.
Denominado "Chuva Sólida", ele é um pó capaz de absorver enormes quantidades de água e ir liberando o líquido aos poucos, para que as plantas possam sobreviver em meio a uma seca.
Um litro de água pode ser absorvido por apenas 10 gramas do material, que é um tipo de polímero absorvente orginalmente criado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês).
Nos anos 1970, o USDA desenvolveu um produto superabsorvente feito de um tipo de goma. Ele foi usado principalmente na fabricação de fraldas.

POTENCIAL

Mas um engenheiro químico mexicano chamado Sérgio Jesus Rico Velasco via no produto um potencial que ia além de deixar bebês sequinhos.
Ele então desenvolveu e patenteou uma versão diferente da fórmula, que pode ser misturada com o solo para reter a água.
O engenheiro vem vendendo a "Chuva Sólida" no México há cerca de 10 anos. Sua empresa afirma que o governo mexicano testou o produto e concluiu que a colheita poderia ser ampliada em 300% quando ele era misturado ao solo.
Segundo Edwin González, vice-presidente da empresa Chuva Sólida, o produto agora vem atraindo um interesse cada vez maior, já que crescem os temores por falta de água.
"Ele funciona encapsulando água e pode durar 8 a 10 anos no solo, dependendo da qualidade da água. Se você usar água pura, ele dura mais."
A empresa recomenda usar cerca de 50 quilos do produto por hectare (10 mil metros quadrados), mas essa quantia custa cerca de US$ 1.500 (o equivalente a R$ 3.500).
Segundo Gonzalez, a "Chuva Sólida" é natural e não prejudica o solo, mesmo após ser usada por vários anos. Ele afirma que o produto não é tóxico e que, ao se desintegrar, o pó se torna parte das plantas.

'SEM EVIDÊNCIAS'

No entanto, nem todos estão convencidos de que a "Chuva Sólida" é uma solução válida para o problema da seca.
A professora Linda Chalker-Scott, da Universidade do Estado de Washington, afirma que esses produtos não são novidade. "E não há evidência científica que sugira que eles armazem água por um ano.", disse ela à BBC.
"Outro problema prático é que esse gel pode também causar problemas. Isso porque à medida que eles secam, ele vai sugando a água ao redor dele mais vigoorosamente. E assim ele desvia a água que iria para a raiz das plantas."
Segundo ela, usar adubo de lascas de madeira produz o mesmo efeito e é significantemente mais barato.
González, no entanto, tem uma opinião diferente: "Os outros concorrentes não duram três ou quatro anos. Os únicos que duram tanto são os que usam sódio em suas formulas, mas eles não absorvem tanto."
Apesar do fato de que a ciência ainda não estar totalmente confiante nos benefícios de produtos como esse, González afirma que sua empresa recebeu milhares de pedidos vindos de locais áridos, inluindo Índia e Austrália. Ele também recebeu encomendas do Reino Unido, onde secas não chegam a ser um problema.




Fonte: folha.uol.com

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Em busca do tempo perdido

Proust e o famoso trecho do gole de chá e do biscoito "madeleine"

“Acho bem razoável a crença céltica de que as almas das pessoas que perdemos se mantêm cativas em algum ser inferior, um animal, um vegetal, uma coisa inanimada, e de fato perdidas para nós até o dia, que para muitos não chega jamais, em que ocorre passarmos perto da árvore, ou entrarmos na posse do objeto que é sua prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e tão logo as tenhamos reconhecido o encanto se quebra. Libertas por nós, elas venceram a morte e voltam a viver conosco.

O mesmo se dá com o nosso passado. É trabalho baldado procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar. Tal objeto depende apenas do acaso que o reencontremos antes de morrer, ou que o não encontremos jamais.

Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixava amolecer um pedaço de Madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava extraordinariamente em mim.

Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreende-la? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um terceiro que trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou mas não a conhece, podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir novamente e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo. Deponho a xícara e me dirijo a meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade. Mas de que modo? Incerteza grave, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o pesquisador, é ao mesmo tempo a região obscura que deve pesquisar e onde toda sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz.

E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não apresentava nenhuma lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a qual as outras se desvaneciam. Quero tentar faze-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação, sem qualquer luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda uma vez a sensação que escapa. E, para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar recuperá-la, afasto todos os obstáculos, toda ideia estranha, protejo meus ouvidos e minha atenção contra os rumores da sala ao lado. Porém, sentindo que o espírito se cansa sem proveito, forço-o, ao contrário, a aceitar a distração que
lhe recusava, a pensar em outra coisa, a se refazer antes de uma tentativa suprema. Depois, pela segunda vez, faço o vácuo diante dele, e coloco de novo em face o sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto palpitar em mim algo que se desloca, desejaria elevar-se, algo que teria se soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas aquilo sobe devagar; experimento a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.

Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim, deve ser a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o inatingível turbilhão de cores remudadas; e não consigo distinguir a forma, pedir-lhe como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho de sua contemporânea, de sua companheira inseparável, pedir-lhe que me diga de que circunstância particular, de que época do passado se trata.
Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de mim? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, desceu de novo talvez; quem sabe se nunca mais voltará de sua noite? Dez vezes é preciso que eu recomece, que me debruce para ele. E, a cada vez, a canseira que nos desvia de toda tarefa difícil, de toda obra importante, me aconselhou largar aquilo, beber meu chá pensando apenas nos aborrecimentos de hoje, nos desejos de amanhã, que se deixam remoer sem fadiga.

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madeleine que minha tia Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto, depois de mergulha-lo em sua infusão de chá ou de tília. A vista do pequeno biscoito não me recordara coisa alguma antes que o tivesse provado; talvez porque, tendo-o visto desde então, sem comer, nas prateleiras das confeitarias, sua imagem havia deixado aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, dessas lembranças abandonadas há tanto fora da memória, nada sobreviesse, tudo se houvesse desagregado; as formas – e também a da pequena conchinha de confeitaria, tão gordamente sensual sob as suas estrias severas e devotas – tinham sido abolidas, ou, adormentadas, haviam perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações.

E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família dos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá...”



Marcel Proust - Em busca do tempo perdido.