sábado, 6 de agosto de 2011

A Criação de Israel: duas visões conflitantes

A história é contada de forma diferente por judeus e palestinos. Para aqueles, foi a concretização de um sonho milenar. Para estes, uma verdadeira desgraça

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Se existe uma lição filosófica inconfundível na criação do Estado de Israel, é esta: o significado de um fato histórico depende do olho de quem o vê. Para boa parte do mundo (incluindo a maioria dos judeus ao redor do planeta, claro) a fundação de Israel foi um feito heróico, uma proeza épica, a culminância de um sonho milenar, que inflamou o coração de gerações e gerações de hebreus desde os tempos da Diáspora. Para os árabes palestinos, no entanto, foi uma catástrofe. Até hoje, eles relembram o ano de 1948 como "El-Nakba" - ou "a desgraça".
A versão israelense
Espalhados pelo mundo desde os tempos do Império Romano, os judeus mantiveram vivas sua cultura e religião e nunca deixaram de sonhar com o retorno à Terra Santa. "Durante mais de 3,7 mil anos, eles mantiveram o vínculo espiritual com sua pátria histórica", escreve o historiador Mitchell G. Bard em Mitos e Fatos - A Verdade sobre o Conflito Árabe e Israelense, obra que mostra a versão oficial de Israel para as origens da briga.
O sonho do regresso ganhou ares de necessidade política na segunda metade do século 19. O anti-semitismo estava crescendo e perseguições multiplicavam-se pela Europa. Por volta de 1890, um grupo de intelectuais europeus de origem hebraica decidiu que seu povo só poderia sobreviver, se pudesse governar a si mesmo - ou seja, criando um país. O movimento ganhou o nome de sionismo (em homenagem a Sião, um dos antigos nomes de Jerusalém) e teve sua figura de proa no judeu austro-húngaro Theodor Herzl (1860-1904), que hoje é um herói quase mítico para os israelenses. Foi Herzl quem lançou a semente que mais tarde germinaria em Israel. No livro O Estado Judeu, de 1896, ele propôs a criação de um país soberano, governado e habitado por judeus, na antiga Terra Santa - que os judeus chamavam de Eretz Israel, ou Terra de Israel, e os árabes de Filistin ou Palestina.
Em 1897, na cidade suíça de Basiléia, os expoentes do sionismo promoveram seu primeiro congresso e criaram a Organização Mundial Sionista, que passou a patrocinar e incentivar a emigração judaica para a Palestina. A idéia de reerguer a antiga Israel das cinzas do passado espalhou-se pelas comunidades judaicas ao redor do mundo com uma labareda idealista. Muitos judeus religiosos acreditavam que a Terra Santa lhes pertencia por decreto divino - afinal de contas, segundo a Torá, Deus passara a escritura de todo o território para Abraão. Outros tinham aspirações mais práticas do que teológicas: queriam ser livres e escapar da Europa o mais rápido possível. O sionismo também foi inflamado pela força crescente dos nacionalismos regionais e a idéia de que todos os povos tinham direito à autodeterminação, que se espalhou pela Europa a partir de 1850.
No final do século 19, havia cerca de 20 mil judeus na Palestina, cujos ancestrais haviam conseguido driblar a expulsão romana e conviver com os árabes ao longo de séculos. Até 1947, o número aumentaria vertiginosamente. Mais de meio milhão de judeus desembarcaram na região, vindos principalmente da Europa - muitos deles fugindo dos nazistas.
Recém-chegados à Palestina, os judeus fundaram comunidades de agricultores de feitio socialista (os kibutz) e passaram a lutar pela criação de seu Estado. A princípio negociaram e depois compraram briga com os britânicos, que na época faziam um jogo duplo, ora comprometendo-se com os interesses sionistas, ora fazendo promessas de independência total aos árabes. A partir de 1945, militantes sionistas passaram a atacar as tropas de ocupação, realizando inclusive atentados terroristas. Outra frente de batalha foi contra os árabes da Palestina, que reagiram com violência à chegada dos imigrantes.
A violência cresceu até que, em 1947, a Inglaterra resolveu tirar o pé desse barril de pólvora. O governo britânico anunciou que encerraria sua presença militar na Terra Santa e deixaria que árabes e judeus resolvessem seu destino. Naquele mesmo ano, a Organização das Nações Unidas decidiu que a melhor maneira de decidir o impasse era dividir a antiga província otomana em dois pedaços. Em uma assembléia presidida pelo diplomata gaúcho Oswaldo Aranha, a ONU instituiu o Plano de Partilha: 55% da região ficaria com os judeus, e 45% com os árabes. Em 14 de maio de 1948, os sionistas, liderados pelo legendário Davi Ben Gurion, fundaram o Estado de Israel, com capital em Tel Aviv, na fatia concedida pela ONU.
Ao contrário do que o mundo esperava, a Partilha não terminou com a disputa - apenas a agravou. Nas décadas seguintes, Israel iria se envolver em uma série de guerras contra seus vizinhos. Para os sionistas, a culpa foi dos árabes, que não aceitaram a divisão da Palestina e tentaram destruir o estado de Israel. "Ficou claro que era impossível uma solução política para o conflito por um fato simples: os árabes não aceitavam a existência de um estado judeu na Palestina, enquanto que os sionistas jamais se contentariam com menos do que isso", escreve Bard. Já a história contada pelos árabes é bem diferente.
A versão palestina
No século 19, quando propagava a idéia da migração em massa para o Oriente Médio, o movimento sionista cunhou um slogan famoso: "a Palestina é uma terra sem povo para um povo sem terra". A idéia de que o local estava vazio, à espera de colonos judeus, deixava os árabes palestinos furiosos. "Muitos sionistas ignoravam o fato de que a Palestina era habitada por mais de meio milhão de árabes no início do século 20 - e que, para eles, aquela terra era o seu lar", diz o relatório "Origens e Desenvolvimento do Problema Palestino", produzido por especialistas e observadores da ONU na década de 80.
Para os palestinos, a imigração maciça de judeus era uma invasão colonialista. "Eles não tinham muitos problemas com os judeus naturais da Palestina, que lá estavam havia séculos e tinham vínculos culturais com seus vizinhos árabes. Mas aqueles que vinham da Europa, com aparência e costumes europeus, eram vistos como colonizadores estrangeiros", diz Paulo Vicentini, especialista em relações internacionais e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além do mais, nem todos os judeus nascidos na Palestina eram sionistas - ao passo que todos os asquenazes (judeus vindos da Europa) estavam lá com o firme intento de criar um estado. Dividir a região em dois pedaços, pensavam os árabes, equivalia a entregar metade do país a forasteiros.
O maior medo dos palestinos era perder suas terras, já que a maior parte deles vivia da agricultura. Temiam que milhares de famílias tivessem de abandonar suas casas e vilas para dar lugar aos colonos judeus. Muitos desconfiavam que os líderes sionistas não se contentariam com metade da Palestina e planejassem, em segredo, conquistar toda a Terra Santa. "Os sionistas sabiam que o território concedido a Israel pela ONU não era grande o bastante para acolher todos os judeus", diz Vicentini. Mesmo havendo sionistas dispostos a ficar só nos 55% acertados pela ONU e a acender o narguilé da paz, a evolução dos eventos acabou descambando para uma ladeira trágica, e o pior dos medos árabes virou realidade.
Para os palestinos, a partilha da ONU tinha um feitio absurdo. Primeiro, achavam a divisão desproporcional: mais da metade da região foi dada ao grupo minoritário, que ainda por cima era formado principalmente por imigrantes (os sionistas respondem que a vantagem territorial era ilusória: boa parte das terras de Israel era desértica). Outro ultraje aos olhos árabes: os territórios dos palestinos estavam picotados, com três fatias separadas umas das outras. A população era de 800 mil árabes, com 10 mil judeus espalhados em vilas dispersas - já na porção que ficou para Israel, havia entre 397 mil e 497 mil árabes, contra 500 mil a 538 mil judeus. "Era óbvio que os sionistas deveriam aceitar uma eventual maioria de árabes em Israel ou expulsá-los do país. Não havia outra escolha", escreve o historiador Michael Palumbo em The Palestinian Catastrophe ("A Catástrofe Palestina").
Logo após a criação de Israel, os vizinhos árabes resolveram entrar na briga e cometeram o que muitos historiadores até hoje consideram um erro estratégico: mandaram a diplomacia às favas e fizeram soar as trombetas da batalha. "Todos os caminhos que tentamos para a paz fracassaram. Não nos resta nada além da guerra. Terei a honra e o prazer de salvar a Palestina", anunciou Abdullah, rei da Jordânia, em 26 de abril de 1948. Um mês depois, exércitos de cinco países árabes (Líbano, Iraque, Jordânia, Síria e Egito) vestiram seus turbantes, empunharam suas metralhadoras e marcharam contra o inimigo recém-nascido. Começava, oficialmente, a primeira guerra entre árabes e judeus.
Mas o ataque iniciado pelo rei da Jordânia e seus aliados de nada serviu para ajudar os primos palestinos. Ao contrário: apenas selou sua ruína.

E se Israel ficasse na Argentina?

No final do século 19, a pressa em fugir do anti-semitismo europeu era tão grande que alguns sionistas consideraram opções inusitadas para a criação do lar judaico. O próprio Theodor Herzl, em O Estado Judeu, ofereceu uma alternativa: em vez do Oriente Médio, os sionistas poderiam ir para a Argentina, "uma das terras mais férteis no mundo". Uma dissidência do sionismo - os "territorialistas" – acreditava que eles deviam fundar seu Estado onde quer que fosse possível. Assim, foram sugeridos locais como Quênia, Congo, ilha de Chipre ou algum ponto no leste da África. Mas a voz atávica falou mais alto: a grande maioria não aceitava outra coisa senão a Terra Santa.

O gaudério de Sion

Um dos diplomatas mais importantes na criação do Estado de Israel nasceu nos pampas do Rio Grande do Sul, em 1884. Oswaldo Euclides de Sousa Aranha começou sua carreira como advogado, mas sempre teve um pé na política. Amigo do caudilho gaúcho Getúlio Vargas, aliou-se a ele na Revolução de 1930, foi ministro de seu governo e trabalhou como embaixador do Brasil nos EUA, onde fez amizade com o presidente norte-americano Franklin Roosevelt. Logo foi galgando postos elevados na Organização das Nações Unidas e, em 1947, quando a situação na Palestina começava a se incendiar, Aranha lutou pela criação de um estado judeu independente. Naquele célebre 28 de novembro em que a ONU decidiu a controversa Partilha da Palestina, Oswaldo Aranha presidia a sessão – foi seu, portanto, o primeiro voto a favor do Estado de Israel. Para os historiadores israelenses, o diplomata brasileiro é um defensor do sionismo. Ironicamente, no Brasil, há quem diga que ele era anti-semita. O historiador Tucci Carneiro, em O Anti-Semitismo na Era Vargas, afirma que Oswaldo Aranha fez o que pôde para impedir que judeus europeus imigrassem para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Outros afirmam que ele só apoiou Israel para não destoar da posição dos norte-americanos.