"Autorretrato com Chapéu de Feltro" (1888), de Vincent Van Gogh
Por trás do cromatismo visceral
de suas telas e de suas composições estonteantes, Vincent Van Gogh, morto aos
37 anos, em 1890, foi um louco, solitário e atormentado. Sua arte, como atesta
a mais extensa biografia escrita sobre o impressionista até hoje, seria
resultado de uma "vontade heroica de viver".
"Ele sofria de uma solidão
desesperadora, não se dava bem com ninguém, tinha surtos psicóticos, sífilis e
um tipo raro de epilepsia", conta Steven Naifeh, coautor de "Van Gogh
- A Vida", recém lançado no Brasil. "É difícil imaginar que mesmo
nesse quadro depressivo, ele se levantava da cama todos os dias para fazer as
suas telas."
No volume de mais de mil páginas,
Naifeh e Gregory White Smith, que já escreveram uma biografia vencedora do
prêmio Pulitzer sobre o expressionista abstrato Jackson Pollock, mergulham nos
ínfimos detalhes da vida conturbada de Van Gogh.
De sua infância na Holanda à
passagem por Paris e o fim da vida no interior da França, constroem um diário
do artista a partir de sua correspondência com o irmão Theo e de relatos da
época.
"Sou um fanático",
escreveu Van Gogh. "Sinto um poder dentro de mim que não posso apagar e
preciso manter aceso. Fico irritado quando me dizem que é arriscado se lançar
ao mar. Há segurança no olho do furacão."
Por um lado, o livro reafirma os
estereótipos do artista delirante, que plasmou a sua visão de mundo com base no
turbilhão mental que o atormentava.
Mas, por outro, lança mão de
novos argumentos para rever alguns episódios na vida de Van Gogh, entre eles o
seu suposto suicídio.
Naifeh e White Smith sustentam
que Van Gogh foi vítima de um assassinato acidental, alvejado pela arma de
verdade de um garoto que brincava de caubói. Segundo os autores, o ângulo do
tiro, a distância que a bala percorreu e o fato de ter atingido o estômago do
artista refutam a tese de um suicídio.
"Ninguém que tenta se matar
atira na própria barriga, que é uma forma muito dolorosa de morrer", diz
Naifeh. "Ele morreu nos braços do irmão depois de 48 horas agonizando.
Também a distância do tiro foi grande demais para que ele estivesse segurando a
arma. Sem contar que ele havia escrito em várias ocasiões que o suicídio é um
exemplo de covardia moral."
MUTILAÇÃO E SUICÍDIO
Em contraponto, o célebre
episódio em que Van Gogh cortou sua orelha direita teria ocorrido, na versão
dos autores, durante um surto psicótico do artista, um contexto diferente do da
morte, em que ele estava lúcido.
"Van Gogh foi muito
coerente. Não é possível fazer qualquer ilação entre esse ato de mutilação e
sua suposta vontade de morrer", diz Naifeh. "Uma pessoa que se mutila
quer ser resgatada, tenta chamar atenção para a própria miséria, mas não quer
acabar com a sua vida."
No caso, Van Gogh cortou a
própria orelha depois de uma briga com Paul Gauguin, que então vivia com ele em
Arles. Gauguin havia se mudado para o interior da França para cuidar de Van
Gogh a pedido de seu irmão Theo, e recebia dinheiro por isso, numa amizade por
contrato.
Quase todas as relações estáveis
de Van Gogh, aliás, seguiam o mesmo arranjo. Sua única mulher, uma prostituta,
passava os dias com ele em troca de dinheiro. Seus modelos também relatavam que
ele os obrigava a posar e que era louco e agressivo.
Talvez pela falta de traquejo
social, Van Gogh focasse mesmo em paisagens e naturezas-mortas. Segundo o
livro, o artista tinha sérias dificuldades em retratar a figura humana, em
especial duas pessoas em perspectiva.
Em seu famoso retrato do carteiro
de Arles, é visível o esforço em mimetizar na tela as mãos do personagem, que
resultam distorcid as e estranhas.
Mesmo assim, Van Gogh gostou
tanto do resultado que copiou essas mesmas mãos em outros quadros que pintou,
até de mulheres.
"Ele ficava tão desesperado
na tentativa de desenhar figuras humanas, que acabava fazendo quase
caricaturas", diz Naifeh. "Mas são sempre arrebatadoras. Sua memória
absorvia tudo o que via, tinha um foco maníaco."
Fora as visões acumuladas, Van
Gogh aproveitava seu isolamento para mergulhar nos livros. Lia em quatro
línguas e releu mais de uma vez a obra de Charles Dickens e William
Shakespeare, mas também livros de autoajuda e poesia romântica alemã.
No livro, os autores argumentam
que tudo isso, das visões psicóticas do artista à interpretação desse arsenal
de leituras, aparece nas telas.
"Sua obra é sempre um embate
entre decisões tomadas de antemão e suas tentativas frustradas diante do
quadro", diz Naifeh. "As combinações de cor que ele usava são únicas
e nada convencionais. Ele pintava com fúria, mas não quer dizer que era
aleatório. Ele era rápido e inteligente."
VAN GOGH - A VIDA
AUTORES Gregory White Smith e
Steven Naifeh
TRADUÇÃO Denise Bottmann
EDITORA Companhia das Letras
Fonte: Folha.Com
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