Charles Darwin e Karl Marx
O impacto da engenharia genética e da
biotecnologia nos dias correntes deve-se, sobretudo, ao clima científico e
intelectual criado por Charles Darwin (1809-1882) e pelos seus seguidores
darwinistas que tornaram possível os notáveis avanços das ciências naturais no
século 20, aprofundando ainda mais as possibilidades de reformarem-se as
estruturas genéticas do ser humano numa escala até então impensável.
Da pré-história à história
"É preciso não esquecer que todos os nossos provisórios conhecimentos
psicológicos deverão um dia basear-se em substratos orgânicos. Afigura-se então
lógico que existam substâncias e processo químicos específicos que produzam os
efeitos da sexualidade e permitam a perpetuação da vida individual na
espécie" (S. Freud. Introdução ao narcisismo, 1914).
Marx acreditava que os homens e mulheres, fossem
burgueses ou proletários, ainda estavam de fato com os pés e mentes na
pré-história. Como bom discípulo de Hegel, ele reservava um lugar honroso à
História propriamente dita, a ter um papel elevado, um momento bem mais sublime
do que a época permitia. A ciência inaugurada por Heródoto estava em seu
ideário associada de algum modo à atividade consciente dos homens, o que, na
realidade, não ocorria, pois, segundo seu famoso axioma, "os homens fazem
a história, mas não têm consciência disso".
Enquanto todos dependiam de necessidades
materiais, de lutar duramente contra a natureza ou inimigos, contra as
injustiças de uma sociedade desigual, partilhando de uma maneira
desproporcional dos frutos do trabalho, não havia condições para a realização
plena do homem, fazendo com que não tivessem se adiantado muito além do cro-magnon.
A brutalidade do cotidiano sufocava a grande maioria: logo a pré-história ainda
se fazia largamente presente na história.
O humanismo bloqueado
A potencialidade humanista dos indivíduos encontrava-se, pois, bloqueada pelas
negaças materiais e pela opressão de classe, o que obrigava a parte mais
sofrida da sociedade a lutar contra os mais beneficiados para poder algum dia
atingir a sua plenitude. Situação que somente seria superada pela construção de
uma sociedade superior a ser constituída revolucionariamente no futuro. O
advento de um enorme projeto de engenharia social estava, pois, enunciado por
Karl Marx bem antes da revolução bolchevique de 1917 e da chinesa de 1949,
marcos fundadores dessa tentativa de fazer-se a história conscientemente, sem
os impedimentos das diversas alienações (econômica, social e cultural) que
embaraçaram os homens até então. Estes dois imensos laboratórios humanos, o
russo e o chinês, fracassaram, como se viu no final do século 20: um, pelo
colapso, o outro, pela estagnação.
A emergência do darwinismo
É em tal cenário de exaustão do projeto marxista de reforma do homem que se
entende a dimensão adquirida pelo seu oposto, o atual projeto social-darwinista
em andamento. Sim, porque Marx e Darwin são os verdadeiros pensadores na nossa
época. É entre eles, entre o filósofo e o naturalista, que foram contemporâneos
na Londres do século 19, que oscilou o Ocidente e boa parte do mundo desde
então.
Sabe-se hoje que Darwin, homem de gênio como
Marx, apesar de consagrar-se inteiramente às ciências naturais, tirara
inequívocas conclusões sociais da sua doutrina da seleção natural. Ao revelar a
profunda ligação da natureza humana com a sua origem animal, descartando do
homem qualquer presença sagrada ou divina, ele abriu caminho e até estimulou a
que o corpo humano servisse como o novo palco das tentativas de melhorar a
humanidade. Ao invés de reformar o homem através de uma enorme convulsão social
- suprimindo a desigualdade pela supressão da propriedade privada e pela
planificação econômica -, utilizando o soviete, o colcós e a comuna rural, como
laboratórios humanos dessa experiência (como era o anseio dos marxistas), o
darwinismo (aqui entendido como síntese de toda concepção naturalista das
ciências) orientou-se num outro sentido, no da biologia.
Consertando a máquina humana
As suas atenções voltaram-se não para os fatores externos ao homem (economia,
sociedade, trabalho ou tecnologia), mas, ao contrário, para a sua estrutura
bio-fisiológica, para a sua composição genética, pois, como afirmara Darwin,
"a hereditariedade é tudo".
Ao invés de tentar consertar o grande maquinismo
social, os seguidores do grande naturalista, menos ambiciosos, preocupam-se em
reformar a máquina humana em si. Rompendo definitivamente com a herança
cartesiana que separava a alma do corpo em esferas distintas, o darwinismo
concluiu, obediente ao velho dito romano do mens sana in corpore sano,
que não há possibilidade de um espírito sadio poder nutrir-se de uma anatomia e
de uma genética defeituosa. Não haveria boa sociedade composta por gente
fisicamente debilitada.
Mendel no lugar de Marx
Os notáveis avanços da medicina moderna combinados com as espantosas
descobertas da microbiologia e da embriologia fizeram com que a engenharia
social, em crise, cedesse lugar à engenharia genética. O sociólogo viu-se
superado pelo biólogo: Marx por Mendel, Lenin por Lineu. Lentamente, mas com
força cada vez maior, configura-se a ideia de uma construção do homem
inteiramente laboratorial, liberto, como se diz, da "loteria da
natureza", porque para o darwinismo subentende-se ser impossível
alcançar-se o verdadeiro humanismo estando o homem ainda preso à sua
animalidade.
O homem neuronal
O novo ser humano que se vislumbra para o século 21 - que Jean-Pierre Changeux
chamou de homem neuronal - está sendo projetado nos gabinetes da engenharia
genética, aparecendo assim como uma espécie de versão biológica do super-homem
de Nietzsche. Dotado com uma nova estrutura (sem doenças, a salvo pestes e
epidemias, imune às taras, intelectualmente atilado) - inspirada, ainda que
remotamente, no transformismo de Lamarck e na frenologia de Gall -, pretende-se
que ele supere o homem tal como ainda o conhecemos (esse abrigo de bacilos e
vírus, dado à estupidez e ao desatino).
Ao alterarem-lhe a composição do DNA, e ao que
Demócrito chamou em eras passadas de "átomos psíquicos", algo
totalmente diferente poderá emergir das incubadoras dessa engenharia genética.
A crise do humanismo clássico
Neste impressionante contexto da Revolução Tecnobiológica que se expande pelo
mundo inteiro, o que restará ao humanismo ocidental de raiz livresca? Durante
séculos, o homem foi doutrinado no lar, na escola e na igreja, tendo um grande
livro (a Bíblia, entre os cristãos, e seus derivados) como referência máxima da
sua formação. O enorme esforço de domesticação do projeto clássico, a ideia de
converter e refinar o homem pela palavra escrita, arrancando-o da animalidade
pela leitura e pela reflexão metafísica, que se estendeu pelos últimos dois ou
três mil anos, provavelmente está para se extinguir.
Alertou Peter Sloterdijk: "um neo-humanismo
se vislumbra", no qual a herança zoológica poderá ser atenuada, senão
superada, não pelas letras impressas, mas pela incisão nas estruturas humanas
do bisturi bioquímico, pela possível alteração no DNA, pela cibernética e pela
radicalização da ciência, articuladas com corretivos feitos por implantes,
transplantes, órgãos artificiais e cirurgias plásticas, desencadeando, aí sim,
a busca das plenitudes verdadeiramente humanas.
Em suma, na modernidade articula-se a superação
em definitivo do lado primata do homem!
Fonte: Portal terra.com/educaterra
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