terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Darwin e Marx: da engenharia social à genética



Charles Darwin e Karl Marx

O impacto da engenharia genética e da biotecnologia nos dias correntes deve-se, sobretudo, ao clima científico e intelectual criado por Charles Darwin (1809-1882) e pelos seus seguidores darwinistas que tornaram possível os notáveis avanços das ciências naturais no século 20, aprofundando ainda mais as possibilidades de reformarem-se as estruturas genéticas do ser humano numa escala até então impensável.

Da pré-história à história
 
"É preciso não esquecer que todos os nossos provisórios conhecimentos psicológicos deverão um dia basear-se em substratos orgânicos. Afigura-se então lógico que existam substâncias e processo químicos específicos que produzam os efeitos da sexualidade e permitam a perpetuação da vida individual na espécie" (S. Freud. Introdução ao narcisismo, 1914).
Marx acreditava que os homens e mulheres, fossem burgueses ou proletários, ainda estavam de fato com os pés e mentes na pré-história. Como bom discípulo de Hegel, ele reservava um lugar honroso à História propriamente dita, a ter um papel elevado, um momento bem mais sublime do que a época permitia. A ciência inaugurada por Heródoto estava em seu ideário associada de algum modo à atividade consciente dos homens, o que, na realidade, não ocorria, pois, segundo seu famoso axioma, "os homens fazem a história, mas não têm consciência disso".
Enquanto todos dependiam de necessidades materiais, de lutar duramente contra a natureza ou inimigos, contra as injustiças de uma sociedade desigual, partilhando de uma maneira desproporcional dos frutos do trabalho, não havia condições para a realização plena do homem, fazendo com que não tivessem se adiantado muito além do cro-magnon. A brutalidade do cotidiano sufocava a grande maioria: logo a pré-história ainda se fazia largamente presente na história.

O humanismo bloqueado
 
A potencialidade humanista dos indivíduos encontrava-se, pois, bloqueada pelas negaças materiais e pela opressão de classe, o que obrigava a parte mais sofrida da sociedade a lutar contra os mais beneficiados para poder algum dia atingir a sua plenitude. Situação que somente seria superada pela construção de uma sociedade superior a ser constituída revolucionariamente no futuro. O advento de um enorme projeto de engenharia social estava, pois, enunciado por Karl Marx bem antes da revolução bolchevique de 1917 e da chinesa de 1949, marcos fundadores dessa tentativa de fazer-se a história conscientemente, sem os impedimentos das diversas alienações (econômica, social e cultural) que embaraçaram os homens até então. Estes dois imensos laboratórios humanos, o russo e o chinês, fracassaram, como se viu no final do século 20: um, pelo colapso, o outro, pela estagnação.

A emergência do darwinismo
 
É em tal cenário de exaustão do projeto marxista de reforma do homem que se entende a dimensão adquirida pelo seu oposto, o atual projeto social-darwinista em andamento. Sim, porque Marx e Darwin são os verdadeiros pensadores na nossa época. É entre eles, entre o filósofo e o naturalista, que foram contemporâneos na Londres do século 19, que oscilou o Ocidente e boa parte do mundo desde então.
Sabe-se hoje que Darwin, homem de gênio como Marx, apesar de consagrar-se inteiramente às ciências naturais, tirara inequívocas conclusões sociais da sua doutrina da seleção natural. Ao revelar a profunda ligação da natureza humana com a sua origem animal, descartando do homem qualquer presença sagrada ou divina, ele abriu caminho e até estimulou a que o corpo humano servisse como o novo palco das tentativas de melhorar a humanidade. Ao invés de reformar o homem através de uma enorme convulsão social - suprimindo a desigualdade pela supressão da propriedade privada e pela planificação econômica -, utilizando o soviete, o colcós e a comuna rural, como laboratórios humanos dessa experiência (como era o anseio dos marxistas), o darwinismo (aqui entendido como síntese de toda concepção naturalista das ciências) orientou-se num outro sentido, no da biologia.

Consertando a máquina humana
 
As suas atenções voltaram-se não para os fatores externos ao homem (economia, sociedade, trabalho ou tecnologia), mas, ao contrário, para a sua estrutura bio-fisiológica, para a sua composição genética, pois, como afirmara Darwin, "a hereditariedade é tudo".
Ao invés de tentar consertar o grande maquinismo social, os seguidores do grande naturalista, menos ambiciosos, preocupam-se em reformar a máquina humana em si. Rompendo definitivamente com a herança cartesiana que separava a alma do corpo em esferas distintas, o darwinismo concluiu, obediente ao velho dito romano do mens sana in corpore sano, que não há possibilidade de um espírito sadio poder nutrir-se de uma anatomia e de uma genética defeituosa. Não haveria boa sociedade composta por gente fisicamente debilitada.

Mendel no lugar de Marx
 
Os notáveis avanços da medicina moderna combinados com as espantosas descobertas da microbiologia e da embriologia fizeram com que a engenharia social, em crise, cedesse lugar à engenharia genética. O sociólogo viu-se superado pelo biólogo: Marx por Mendel, Lenin por Lineu. Lentamente, mas com força cada vez maior, configura-se a ideia de uma construção do homem inteiramente laboratorial, liberto, como se diz, da "loteria da natureza", porque para o darwinismo subentende-se ser impossível alcançar-se o verdadeiro humanismo estando o homem ainda preso à sua animalidade.

O homem neuronal
 
O novo ser humano que se vislumbra para o século 21 - que Jean-Pierre Changeux chamou de homem neuronal - está sendo projetado nos gabinetes da engenharia genética, aparecendo assim como uma espécie de versão biológica do super-homem de Nietzsche. Dotado com uma nova estrutura (sem doenças, a salvo pestes e epidemias, imune às taras, intelectualmente atilado) - inspirada, ainda que remotamente, no transformismo de Lamarck e na frenologia de Gall -, pretende-se que ele supere o homem tal como ainda o conhecemos (esse abrigo de bacilos e vírus, dado à estupidez e ao desatino).
Ao alterarem-lhe a composição do DNA, e ao que Demócrito chamou em eras passadas de "átomos psíquicos", algo totalmente diferente poderá emergir das incubadoras dessa engenharia genética.

A crise do humanismo clássico
 
Neste impressionante contexto da Revolução Tecnobiológica que se expande pelo mundo inteiro, o que restará ao humanismo ocidental de raiz livresca? Durante séculos, o homem foi doutrinado no lar, na escola e na igreja, tendo um grande livro (a Bíblia, entre os cristãos, e seus derivados) como referência máxima da sua formação. O enorme esforço de domesticação do projeto clássico, a ideia de converter e refinar o homem pela palavra escrita, arrancando-o da animalidade pela leitura e pela reflexão metafísica, que se estendeu pelos últimos dois ou três mil anos, provavelmente está para se extinguir.
Alertou Peter Sloterdijk: "um neo-humanismo se vislumbra", no qual a herança zoológica poderá ser atenuada, senão superada, não pelas letras impressas, mas pela incisão nas estruturas humanas do bisturi bioquímico, pela possível alteração no DNA, pela cibernética e pela radicalização da ciência, articuladas com corretivos feitos por implantes, transplantes, órgãos artificiais e cirurgias plásticas, desencadeando, aí sim, a busca das plenitudes verdadeiramente humanas.
Em suma, na modernidade articula-se a superação em definitivo do lado primata do homem!




Fonte: Portal terra.com/educaterra

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