“Somos poeira de estrelas”. A frase é do cosmologista Carl Sagan (1934-1996) e foi celebrizada na série “Cosmos”, de 1980. Sagan era um cientista brilhante e divulgador da ciência melhor ainda. Ele tinha o dom de sintetizar em frases inspiradas todo o sentido do maravilhoso que percebia na observação do universo. Assim, a Terra tornou-se aquele “pálido ponto azul” (pale blue dot) onde vivemos, um grão rochoso contaminado pela vida e orbitando uma estrela comum, como tantas bilhões de outras, num braço de uma galáxia em espiral chamada Via Láctea, que se confundia com as outras bilhões de galáxias do universo. Ainda assim, e apesar do nosso pálido ponto azul ser um nada no oceano cósmico, seja na tevê seja em seus livros Sagan fazia a Terra reluzir como um brilhante precioso, por ser o berço da vida como a conhecemos, o berço da nossa espécie e a espaçonave que nos transporta em uma valsa celestial. Ao afirmar e reafirmar a preciosidade do nosso planeta, Sagan jamais usou este argumento para defender o indefensável, que a vida seria exclusiva da Terra. Ele, mais do que ninguém, defendeu a certeza estatística incontornável de que o universo está coalhado de vida e civilizações avançadas. Sagan usou a literatura para ilustrar essa certeza, no romance “Contato”, de 1985. “O universo é um lugar muito, muito grande”, diz Jody Foster no filme homônimo de 1997. “Se só existisse vida aqui na Terra, então o universo seria um enorme espaço desperdiçado.” Mas não é. A prova é que estamos aqui, usando a imaginação para entender a natureza e sonhar com as possibilidades de vida em outros mundos. Outra prova está na universalidade das leis da física, que tanto determinam a formação de espirais de espuma quando se mexe com a colherinha numa xícara de café, quanto influem na dança das galáxias.
Os ingredientes da vida
Uma terceira prova de que o universo não é um enorme desperdício de espaço está na origem da matéria, a origem dos átomos aprisionados nas moléculas que constituem cada uma das 100 trilhões de células do corpo humano. Cada célula humana é constituída por uns 10 quadrilhões de átomos. E cada um destes foi forjado no coração de estrelas há muito extintas. Não estou me referindo apenas aos átomos do seu e do meu corpo, mas também aos átomos de toda a humanidade, de todas as formas de vida, dos vírus à baleia-azul, assim como o ar que respiramos, o sapato que calçamos, o solo onde pisamos, a crosta terrestre que flutua sobre o manto de rocha liquefeita que forma a interior da Terra, os outros planetas do sistema solar, os bilhões de planetas das 100 bilhões de estrelas da Via Láctea, apenas uma entre as 400 bilhões de galáxias do universo visível... Todos estes átomos foram forjados no núcleo de estrelas que explodiram. O oxigênio e o nitrogênio que respiramos; o carbono que é a base da vida; o cálcio de nossos ossos; o sódio, o fósforo, o magnésio, o iodo e o potássio essenciais ao organismo; o ferro e o alumínio das máquinas; o cobre dos fios elétricos e o silício dos computadores... Todos estes elementos químicos saíram da fornalha atômica de supernovas, estrelas gigantes que, ao esgotar seu combustível, explodiram, semeando na vastidão interestelar os ingredientes dos planetas e da vida.
A vida evoluiu na Terra há mais de 3 bilhões de anos. Já a matéria que constitui a vida é muito mais antiga. Os elementos químicos forjados nas supernovas tiveram que vagar por centenas de milhões de anos no espaço em nuvens de poeira. Eventualmente, a atração gravitacional em algum ponto de uma nuvem forçou o início de um processo de concentração, atraindo os átomos da nuvem e concentrando-os num local que viria a atingir densidade e temperatura incríveis. Quando, naquele ponto da nuvem, os átomos de hidrogênio se encontravam tão próximos uns dos outros a ponto de se fundir - e a temperatura se elevou aos 10 milhões de graus - dois átomos de hidrogênio se fundiram para formar outro, de hélio, liberando energia. Esta energia precipitou a fusão de outros átomos de hidrogênio, desencadeando uma reação nuclear em cadeia. Nascia o Sol. Com os planetas a história foi diferente. As porções da nuvem que estavam afastadas o suficiente do Sol para não ser tragadas pela sua atração gravitacional acabaram por se condensar na forma de planetas. Ali os elementos químicos forjados há bilhões de anos no seio de supernovas puderam dar início à geologia e à vida.
A forja elementar
O universo surgiu no Big Bang, a explosão primordial que lançou matéria e energia em todas as direções há 13,7 bilhões de anos. A temperatura infinita da explosão primordial foi suficiente para espalhar pelo universo só três elementos: o hidrogênio, o hélio e o lítio, os elementos mais leves, de números atômicos 1, 2 e 3, respectivamente, pois o átomo de hidrogênio possui apenas um próton solitário em seu núcleo, o hélio tem dois e o lítio, três. Todos os demais elementos químicos, do elemento de número 4, o berílio, ao urânio de número 92, saíram das três gerações de supernovas que se sucederam desde o início dos tempos. Sua criação seguiu dois passos: a forja e a explosão. O elemento mais abundante do universo é o hidrogênio. Ele é combustível nuclear das estrelas. Uma estrela pequena como o sol irá queimar o seu estoque de hidrogênio por 10 bilhões de anos (já se passaram 5 bilhões...) até o combustível esgotar e o Sol começar a se contrair e resfriar, tornando-se uma estrela anã-branca. As estrelas cuja massa é, no mínimo, oito vezes maior que a do Sol têm uma vida mais curta e uma morte espetacular. O hidrogênio da estrela vai queimando e formando hélio.
A fusão libera a cada instante uma energia equivalente a milhões de bombas atômicas explodindo simultaneamente. É esta energia incrível emitida do núcleo da estrela que impede que suas camadas externas dasabem em direção ao núcleo sob o efeito da força da gravidade. Assim, uma estrela pode ser definida como a luta incessante entre a fusão nuclear e a força da gravidade - um luta aonde a gravidade sempre vence. No caso de estrelas muito grandes, a energia liberada no núcleo precisa ser maior para compensar a força gravitacional, que é também maior, dado o volume da estrela. A estrela começa queimando hidrogênio a 10 milhões de graus e produzindo hélio. A temperatura no núcleo vai aumentando até que o calor seja suficiente para começar a fundir átomos de hélio, criando lítio. O processo se repete como nos degraus de uma escada. Cada novo elemento precisa de temperaturas maiores para fundir e criar o elemento seguinte da tabela periódica. Assim chega a vez do elemento 6, o carbono, do oxigênio 8, do alumínio 13, do cálcio 20, e, por fim, do ferro 26. Neste ponto, a temperatura no interior da estrela é de 100 milhões de graus. Quando a estrela começa a produzir ferro, sua sorte está selada.
O fim da estrela chegou. Ao tentar fundir átomos de ferro para produzir o elemento seguinte, que seria o cobalto, a reação nuclear deixa de produzir energia suficiente para manter a coesão da estrela. É o momento em que a força da gravidade vence a luta, o instante em que a fusão nuclear acaba, e as camadas externas da estrela conseguem desabar livremente em direção ao núcleo. Como não há espaço para todo aquela matéria ocupar o mesmo lugar, a estrela explode em supernova. As supernovas são as explosões mais cataclísmicas conhecidas dos astrônomos. No momento em que acontecem, alcançam temperaturas de vários bilhões de graus, suficiente para forjar todos os demais elementos naturais, do cobalto 27 ao urânio 92. Quando a supernova ejeta ao espaço as suas camadas externas, ela está semeando o espaço interestelar com os elementos químicos que forjou. É a “poeira de estrelas” que Sagan tão bem descreveu de forma poética, a “poeira de estrelas” que um dia circulará em nosso sangue.
P.S.:
Os demais elementos, mais pesados que o urânio 92, não existem na natureza. Se foram criados no Big Bang ou em explosões de supernovas, desapareceram no instante seguinte. No caso do plutônio (o elemento 94), ele surge na forma de lixo das usinas nucleares. Já os novos elementos de número 113 (ununtrium) e 118 (ununoctium), recém-descobertos em 2010, são artificiais, assim como todos os elementos mais pesados que o urânio, à exceção do plutônio. Eles foram detectados durante os seus poucos milionésimos de segundo de existência, no meio dos escombros das colisões de átomos no interior dos aceleradores de partículas. Estes elementos são absurdamente instáveis. Só existem por um instante, decaindo assim que são criados para formar outros elementos estáveis, aqueles que constituem a matéria do universo em que vivemos.
Peter Moon
Fonte: Revista Época em 08.09.2011 às 11:35h
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