sábado, 28 de maio de 2022

O apelo do Concriz: João Gomes Sobrinho (Xexéu)






O próprio poeta recita o poema. Assista o vídeo abaixo:

Fonte do vídeo: (freemake.com)

 


O apelo do concriz (João Gomes Sobrinho – Xexéu)

 

O homem quer liberdade

Para viver satisfeito

Pois de maneira nenhuma

Abre mão desse direito

Quem sabe se os passarinhos

Não pensam do mesmo jeito.

 

Os versos que eu tenho feito

De minha propriedade

Eu agradeço ao meu pai

Porque me deu liberdade

Deu assistir cantadores

Na minha comunidade.

 

Minha sensibilidade

Jamais consegue olvidar

Das noites que assisti

Nestor Marinho cantar

Representando a cultura

Do povo do meu lugar.

 

Onde aprendi manejar

Enxada, foice e machado

Ler escrever e contar

Mesmo sem ter estudado

Tocar viola e cantar

De repente improvisado.

 

De pensamento voltado

Pra Divina Providência

Envio a minha mensagem

Recebo a correspondência

Rima, métrica e oração

Ritmo, compasso e cadência.

 

Quem me deu inteligência

Foi quem deu aroma a flor

É quem faz a noite calma

Banhar com lágrimas de amor

As pétalas da rosa virgem

Do jardim do Criador.

 

É onde o trovador

Quanto mais ver mais aprende

No altar da matutina

De onde a lua depende

Desenha quadros poéticos

Que só o poeta entende.

 

Os nativos compreendem

A orquestra matinal

Dos músicos da natureza

Nas frondes do vegetal

Louvando o nascer do dia

Num coreto angelical.

 

Complementa o musical

O belo galo campina

Na copa do juazeiro

De vez em quando clarina

Embelezando o cenário

De uma manhã nordestina.

 

Sobre as flores da campina

Pode se observar

Os casais de bem-te-vis

Trocando beijos no ar

Mostrando a Deus e o mundo

Que faz amor sem pecar.

 

Quando não que mais voar

Sobre as flores do vergel

Nas sombras do arvoredo

Conjuga o amor fiel

Sem gastar com camisinha

Nem horário de motel.

 

Representa no painel

Como manda o figurino

Com a decência dos trajes

E a composição do hino

Exibe um filme modelo

No cinema matutino.

 

Num feriado junino

Fui declamar num festim

Vi um concriz na gaiola

Cumprindo pena sem fim

Quando me viu começou

Cantar suplicando assim.

 

Xexéu tenha dó de mim

Já que você tem noção

Entende bem o que eu digo

Na voz da minha canção

Em nome da liberdade

Me salve dessa prisão.

 

Eu não entendo a razão

Mas você é sabedor

Que eu cai por inocente

No laço do predador

Só pelo simples motivo

De ser um bom cantador.

 

Ausente do meu amor

Não sabe o quanto padeço

Essa comida eu não gosto

Essa água eu aborreço

Longe dos meus conhecidos

Perto de quem não conheço.

 

Nem quando cochilo esqueço

Da floresta que eu vivia

Da fruta fresca no pé

Que eu beliscava e comia

Mais a minha companheira

Na fonte clara eu bebia.

 

Sozinho nessa enxovia

Pensando na minha gata

Talvez essa hora esteja

Fazendo queixa a cascata

Que minha beleza está

Fazendo falta na mata.

 

Desse gaiola barata

Para o convívio do mato

Posso voltar algum dia

Quando um poeta sensato

Através da minha voz

Compreender o meu relato.

 

Xexéu publique um boato

Da minha situação

Fazendo verso capaz

De sugerir emoção

É essa a única esperança

Da minha libertação.

 

Quando ouvi a petição

Do concriz na soledade

Lembrei de mim que também

Choro lágrima de saudade

Porque perdi para sempre

Quem consagrei amizade.

 

Sinto na realidade

O quanto o amor é doce

Que a minha esposa morreu

Mas o amor entranhou-se

Continua no meu peito

Com se viva ela fosse.

 

Hoje eu sou como se fosse

Um jangadeiro sem norte

Naufragado e sem destino

Aguardando um vento forte

Sacudir minha jangada

Sobre o rochedo da morte.

 

Ainda tenho por sorte

O som que a rabeca faz

Quando lhe abraço sentido

Saudades sentimentais

Dos tempos saudosíssimos

Que morro e não vejo mais.

 

O concriz vivia em paz

De repente foi traído

Hoje suplica sozinho

Numa gaiola detido

Sem tirar a sua amante

Um segundo do sentido.

 

A quem tinha lhe prendido

Eu perguntei pra saber

Se você tivesse preso

Longe do seu bem querer

Cantava por trás das grades

Saltitante de prazer?

 

Ele não quis responder

Eu fui me adiantando

Aquela cantiga dele

É o coitado exclamando

E o carcereiro imbecil

Não está interpretando.

 

Vi seus olhos marejando

Como agente quando chora

Sentindo a dor da saudade

Que seu coração devora

De quando voava livre

Cantando feliz na flora.

 

Tem gente que ignora

A saudade de quem ama

Pergunte a um cidadão

O que ele sente na cama

Longe da mulher amada

Que lhe puxava o pijama.

 

Fiz uns versos pra o IBAMA

Do jeito que eu muito quis

O IBAMA veio urgente

Pelo apelo que eu fiz

Arrebentou a gaiola

E libertou o concriz.

 

Eu fiquei muito feliz

Por ver o concriz liberto

E ele muito mais ainda

Voando de bico aberto

Como quem dizia ali

Nunca mais passo nem perto.

 

Foi pousar no canto certo

No meio da parentela

Encontrou a sua amante

Na mata da Micaela

Eu outro dia vi ele

Feliz da vida com ela.

 

O concriz fora da cela

Com a amante do lado

Reconheceu-me de longe

Cantou bonito e dobrado

Dizendo a meu entender

“Poeta, muito obrigado”!

 

Eu sai todo empolgado

Que nem um xexéu pachola

Cantando com o sabiá

E patativa de gola

Feliz por ter libertado

O meu colega da gaiola.

 

 

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário