Em novo livro, o escritor paulista implode as fronteiras entre passado e presente com as lembranças do que vale ser revivido pela escrita
Em novo livro, o escritor paulista implode as fronteiras entre passado e presente com as lembranças do que vale ser revivido pela escrita
Alguém escreveu certa vez (quem souber, por favor, avise; nessa o Google não ajudou): não importa para onde vamos, estamos sempre voltando para casa*. Para um escritor, é possível imaginar que o caminho de volta tenha uma dose extra de sobressaltos. É o que, em outras palavras, Gabriel Garcia Márquez definiu como ofício, em seu “Viver para Contar”. “A vida não é o que a gente viveu, mas como a gente viveu, e como recorda para contá-la.”
A lógica parece pulverizada em qualquer obra, qualquer mesmo, que leve em conta o sentido da escrita e suas memórias, referências, questionamentos, amores incicatrizáveis e ódios mal distendidos. Mas algumas conseguem encerrar em si a própria reflexão sobre o ofício, mesmo não se tratando de autobiografia. Uma reflexão, portanto, sobre o que se pensa enquanto se escreve – ou seja, sobre o que vale a pena ser vivido, revivido, lembrado, contado. É quando o autor passa a ser também personagem da própria ficção, numa sobreposição de planos entre sujeito e objeto de uma mesma história.
Em seu novo livro, “Acordei em Woodstock”, Ignácio de Loyola Brandão leva essa postura a um outro patamar. A leitura, aparentemente sobre um simples relato de uma viagem feita com a mulher e um casal de amigos (um primo e a esposa) pela costa leste dos Estados Unidos, é um testemunho de que, a certa altura da vida, é impossível se desconectar de um mundo já vivido, ouvido, sonhado ou sentido. Ao escrever o relato em 2011, Loyola relembra do Loyola de 2000, ano em que foi realizada a excursão. Não deixa de ser uma vista privilegiada, sabendo, 11 anos depois, o que aconteceu com o Planeta na década que se seguiu àquela viagem, realizada às vésperas dos desmoronamentos do 11 de Setembro.
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Ao reescrever o caminho, já sabendo o desfecho de um destino já manifestado (não só o caminho de volta, mas também os eventos históricos que se seguiram aos atentados às Torres Gêmeas, mais tarde replicados em Madri e Londres; as duas guerras chamadas preventivas; a dissolução da confiança no sistema financeiro; o erguimento de uma nova coluna de valores, nacionalista, xenófoba; o estreitamento das relações pessoais via antena ou fibra ótica, a ascensão das redes sociais) ele implode o espaço supostamente delimitado entre passado, futuro e presente.
Assim como não existe fronteira temporal, ainda que a memória esteja catalogada num caderno de bolso, também não existe sujeito passivo à história e seus agentes. É impossível escapar dos ventos da mudança – ainda que, em vez de viajar, o autor optasse por se distanciar de um velho mundo trancando-se nele, como faz o Doutor Passavento, personagem de Enrique Vila-Matas no livro de mesmo nome.
O que existe, sobretudo, são memórias. Não de um lugar, uma ocasião; mas do que foi falado, pensado, sugerido num determinado momento e que se molda ao ser recontado. É como se novas possibilidades de viver, e contar, se multiplicassem a depender do ponto de origem; uma história sobre a cidade-natal, contada em 2000, não será a mesma em 2011, assim como não seria a mesma história contada no dia seguinte às tardes hoje relembradas. É assim que, ao se deparar, num hotel de Nova York, com réplicas de cartazes de filmes mexicanos vistos na adolescência, Loyola não se depara apenas com a lembrança dos filmes, mas do lugar onde o filme foi visto, e das ideias, lembranças, referências e expectativas que se manifestavam enquanto um projetor se iluminava, numa sala que já não existe, numa cidade que ainda existe, mas já não é a mesma.
'Acordei em Woodstock', as memórias de Brandão
Parece um exercício aleatório de lembranças. Mas no livro todo só a viagem tem um roteiro. As veredas recordadas são mais extensas que as rotas a levar os viajantes de Newark a Nova York. Não parece ser à toa que Loyola leve apenas 3 páginas (descontado o prefácio), no meio a uma viagem dentro dos EUA, para fazer a primeira referência direta à sua cidade-natal, Araraquara – palavra que ao longo do fluxo (o da memória, não da viagem) aparecerá mais vezes do que qualquer local a ser atingido, descoberto. Tanto quanto outra referência, Hollywood, que, geograficamente, está tão distante da rota percorrida por ele e seus amigos, do outro lado da costa americana, quanto Araraquara da Amazônia. Não para o escritor, que em algum canto de uma antiga cidade era bombardeado diariamente pelos filmes que chegavam a ele (e à Amazônia, e à costa leste, oeste e qualquer outro lugar do mundo) vindos dos estúdios em Los Angeles.
Assim como, para ele, não parece a primeira vez que os lugares descritos são visitados – alguns de fato não o são. O autor/leitor já esteve lá muito antes, quando, o jovem ou o adulto escritor de projeção, percorria as páginas dos livros que o forjaram e os espaços por onde um dia circularam seus ícones, como Scott Fitzgerald, Rudyard Kipling, Herman Melville, Mark Twain, J. D. Salinger (que estava em algum lugar por perto, sem que o viajante desconfiasse) e também os roteiristas, pintores, músicos, fotógrafos, cineastas e eventos de um passado que, de alguma maneira, afetaram ou influenciaram texto e autor – seja o festival de Woodstock, que Loyola conheceu por foto (de uma mulher “nua na chuva, entre milhares de pessoas vestidas, que perturbou o mundo, uma geração”). Sobre cada um deles há parágrafos ou capítulo dedicados durante o relato de uma viagem que também é deles. Porque, de alguma forma, todos estão conectados a ele, mesmo antes, durante e depois da viagem, da lembrança e da produção do livro.
“À medida que a gente envelhece, a vida começa a se tornar uma série de reencontros?”, pergunta o autor, num ponto alto do texto. “Ou será que retornamos propositalmente, tentando desfrutar, agora, o que deveríamos ter desfrutado antes? Poderíamos ter vivido melhor aqueles instantes? Como saber? Quem disse que a vida é um ensaio constante? Enquanto a representação verdadeira não acontece, vivemos os ensaios.”
Esse conflito, a busca por meio da escrita de uma vida que corre em paralelo (justamente na lembrança) é o que faz de Loyola um dos mais vigorosos investigadores da infância, o local de origem, como dom universal. Há no mundo os que a trancam, a cadeados, e há os que jogaram miolos de pães para o caminho de volta, numa tentativa de resgate de um tempo de menino, de paz intocada. Loyola está nesta segunda categoria, e poucos sabem como ele encontrar o caminho de volta e ainda assim seguir adiante. Dele brotam lembranças, detalhes, nuances como se, não fosse a válvula da escrita, houvesse o risco de explodir. O preço é estar condenado a contar (e a viver) uma vida que não permite jamais que uma simples viagem seja uma simples viagem – porque, para o autor, qualquer viagem só tem sentido se for a dele para ele mesmo.
* O leitor Rodrigo Cerqueira avisa: “A frase inicial é do romântico alemão Novalis; frase utilizada brilhantemente por Raduan Nassar no assombroso romance ‘Lavoura Arcaica’ “. Obrigado, Rodrigo!
Fonte: Carta Capital
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