Texto
criado depois de ouvir relatos dos mais antigos. Pessoas que presenciaram e relataram as cenas. Mesmo que de forma oral, muito do que contaram foi verdade.
Cheia de 1964
Era
o começo de março de 1964 quando o céu sobre o Município de Santo Antônio, no Rio Grande do Norte, começou a escurecer de um jeito diferente. As nuvens, carregadas e
densas, anunciavam que o inverno naquele ano seria rigoroso. Poucos acreditavam
que aquelas chuvas trariam mais do que fartura. Afinal, o povo da região estava
acostumado a esperar pelas águas como quem espera por bênçãos. Mas ninguém
imaginava que, naquele ano, o Rio Jacu e o seu afluente próximo à cidade (o Riacho dos Macacos) viriam a reclamar a área de várzea que era deles, com uma
fúria que ficaria marcada na memória de todos.
As
primeiras pancadas de chuva vieram brandas, refrescando o chão quente e a
vegetação seca. O cheiro de terra molhada tomava as ruas, e as crianças corriam
descalças sob o aguaceiro, rindo da novidade. Os adultos olhavam o céu com
certo alívio, calculando mentalmente o quanto de milho e feijão plantariam. Mas
os dias foram passando, e a chuva não deu trégua. Era água de manhã, à tarde e
à noite. O barulho das goteiras passou a embalar o sono e a vigília. O Rio
Jacu, que cortava o município com sua calma costumeira, começou a mostrar
sinais de inquietação.
Quando
a enchente chegou de fato, ninguém estava preparado. As águas invadiram as
margens com força, arrastando o capim, os paus, os cercados. O cemitério, que
ficava próximo ao leito do rio, foi o primeiro a sentir o golpe da natureza. As
covas ficaram tomadas pela lama; cruzes se inclinavam sob o peso da correnteza,
e o silêncio do campo-santo deu lugar ao murmúrio das águas que se infiltravam
por entre os túmulos. Era uma cena triste e, ao mesmo tempo, de uma beleza
trágica — como se o tempo tivesse parado diante da força bruta da natureza.
As
ruas de Santo Antônio, outrora secas e poeirentas, transformaram-se em canais
de lama. As casas mais baixas foram invadidas pela água, e os moradores corriam
de um lado para o outro tentando salvar o que podiam: um colchão de palha, um
tamborete, uma fotografia, a imagem de um santo. As mães carregavam os filhos
no colo, temendo o desconhecido, enquanto os mais velhos observavam em
silêncio, recordando outras cheias, menores, menos impiedosas.
Naquele
cenário de aflição, um homem chamava atenção pela coragem e pelo sofrimento: o
vaqueiro Antônio Bento. Conhecido por sua bravura e habilidade com o gado e por
nunca abandonar um animal, ele se via diante de um desafio que nem sua força
nem sua experiência pareciam dar conta. As águas haviam cercado a fazenda do
seu patrão, e o rebanho mugia desesperado. Antônio montou seu cavalo e, com a
água já na altura da sela, começou a conduzir os bois para um terreno mais
alto. A chuva batia-lhe no rosto como agulhas, mas ele não desistia. A cada
metro conquistado, um bezerro era salvo; a cada volta, um novo risco. Quando
enfim alcançou a parte seca, caiu de joelhos, exausto, mas aliviado. Parte do
rebanho ficara para trás — e isso o doía mais do que a própria fadiga.
Não
muito longe dali, João Pifano vivia seu próprio drama. Tinha um boi de
estimação e da carroça, companheiro de tantas lidas, que fora levado pela
correnteza. Tentou alcançá-lo, gritando, mas as águas o engoliram num movimento
rápido e cruel. João ficou parado à beira do rio, olhando o vazio, com os olhos
marejados. O boi, para ele, não era apenas um animal — era um símbolo de anos
de trabalho, de luta e de sobrevivência. A perda parecia resumir toda a
impotência humana diante da natureza.
Na
igreja matriz, ponto central da cidade, as águas chegaram próximas ao adro,
ameaçando entrar. Os sinos silenciaram, como se respeitassem um luto coletivo.
O padre, aflito, abrigou famílias em seu interior, transformando o templo em
refúgio. Ali, o povo rezava, não apenas pedindo que a chuva parasse, mas também
agradecendo por ainda estarem vivos. Velas acesas tremeluziam nas mãos,
refletindo-se na água que já chegara a poucos metros da porta da frente. Era um cenário de fé e
desespero, em que o medo se misturava à esperança.
Alguns
sítios e fazendas ao redor estavam meio submersos. O que antes era pasto
seco agora era um espelho d’água. Árvores pareciam ilhas isoladas, e barcos
improvisados começaram a surgir — feitos de portas, caixotes, troncos. O povo
sertanejo, resistente como o solo que habita, mostrava mais uma vez sua
capacidade de enfrentar a adversidade. Entre gestos de solidariedade, dividiam
o pouco que restava: um pedaço de pão, uma coberta, um lugar seco para dormir.
Os
dias seguintes foram de desolação. Quando a chuva finalmente cessou, o sol
reapareceu tímido, revelando o rastro da destruição. O barro cobria tudo. As
ruas, antes alegres, agora pareciam fantasmas. Restava às pessoas o trabalho
árduo de reconstruir o que as águas haviam levado. O cemitério precisou ser
limpo e reorganizado, a igreja recebeu reparos, e as fazendas tentavam se
reerguer. Mas algo mudara para sempre na memória de Santo Antônio: a certeza de
que o rio, por mais manso que parecesse, guardava uma força silenciosa, pronta
para despertar.
Com
o tempo, as histórias da cheia de 1964 viraram lembrança. Nas conversas de fim
de tarde, os mais velhos ainda falavam da “grande cheia do Jacu”, como quem
narra uma lenda. As crianças ouviam atentas, com olhos arregalados, tentando
imaginar o dia em que o rio subiu e fez o povo fugir. Para uns, era um castigo
divino; para outros, apenas um capricho da natureza. Mas todos concordavam em
uma coisa: depois daquela enchente, Santo Antônio nunca mais seria o mesmo.
Hoje,
quando a chuva cai forte e o rio começa a subir, há quem ainda sinta um frio na
espinha. A memória da cheia de 1964 permanece viva, não apenas nas palavras,
mas no respeito que o povo aprendeu a ter pelo Rio Jacu. E, de alguma forma,
entre o medo e a reverência, ficou também a lição: o homem pode tentar dominar
a terra, mas é a natureza que dita as regras — e o rio, paciente e antigo,
nunca esquece o seu caminho.
Por: Claudianor Dantas
Geógrafo e Bacharel em Administração Pública