domingo, 30 de junho de 2013

Um gênio reprovado:Dois contos escritos por um jovem Guimarães Rosa – e criticados em concurso por Graciliano Ramos – serão finalmente oferecidos ao público

Guimarães Rosa e Graciano Ramos

As obras do escritor alagoano Graciliano Ramos e do mineiro João Guimarães Rosa têm pouco em comum. Seus estilos são antagônicos. O primeiro é árido, contido, realista. O segundo, prolixo, místico, quase barroco. Os escritores também tiveram pouco contato. Isso não impediu que Graciliano, autor do clássico Vidas secas, alterasse os rumos da carreira de Guimarães Rosa.
Homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, que começa nesta semana, Graciliano (1892-1953) foi jurado de um concurso literário da editora José Olympio, em 1938. Um dos candidatos era o livro Contos, assinado por Viator. Por trás do pseudônimo, estava Guimarães Rosa (1908-1967), até ali um desconhecido médico mineiro. Graciliano achou seu conteúdo desigual, com alguns contos excelentes e outros “ordinários”. Convenceu o júri a não agraciar a obra com o prêmio. A vitória ficou nas mãos de Luís Jardim e seu livro Maria Perigosa, obra desconhecida e absolutamente apagada na história da literatura brasileira. Quando o livro de Rosa finalmente chegou ao público, oito anos depois, com o nome de Sagarana, estava mais enxuto, sem três contos da versão inicial. Eram justamente os contos que Graciliano criticara. Rosa chegou a reescrever um deles, publicado posteriormente. Os outros dois, até hoje inéditos, estão preservados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). ÉPOCA submeteu os dois contos a três críticos literários para avaliar a opinião de Graciliano. Os textos serão publicados neste ano, num portal que a editora Nova Fronteira prepara sobre Guimarães Rosa.

O júri de 1938 reunia cinco escritores. Na ocasião, Graciliano explicou sua posição: “Votei contra esse livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me pareceram bastante ordinários. (...) Esses dois contos e algumas páginas campanudas, entre elas uma que cheira a propaganda de soro antiofídico, me deram arrepio”. Rosa não era exatamente um novato. Anos antes, publicara na revista O Cruzeiro contos de suspense, se aventurara pela poesia e escrevera o livro Magma, que não publicou enquanto vivo. Somente com Sagarana, iniciado aos 29 anos, encontrou seu estilo. Eram contos passados no interior de Minas Gerais, que dialogavam com a literatura e a filosofia clássicas. Após o concurso, Viator desapareceu sem revelar sua identidade. Aos pais, falava do carinho que tinha por esse primeiro livro. “Era o favorito do meu pai, porque era o primeiro e porque foi um sobrevivente”, diz a filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa.

Como funcionário do Itamaraty, Rosa foi trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha. Os originais de Sagarana ficaram no Brasil com sua primeira mulher, Lygia. Ela tentou levá-los à Alemanha, mas, com a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro proibiu que mulheres e filhos de diplomatas viajassem. Numa noite de 1941, Rosa estava em Hamburgo e acordou com vontade de fumar. Não tinha cigarros em casa. Foi até a loja da esquina, quando soou o alarme alertando para um ataque aéreo iminente. Rosa conseguiu correr para um abrigo, onde passou a madrugada. Ao amanhecer, viu que seu prédio fora bombardeado. Ele fora salvo por causa do cigarro, e Sagarana, caso estivesse no apartamento, teria sido destruído. “Meu pai adquiriu, a partir desse incidente, um sentimento místico que influenciou sua obra”, diz Vilma.

No final de 1944, Rosa conheceu Graciliano Ramos. Revelou ser o autor derrotado no concurso e não demonstrou ressentimentos. Em 1946, lançou Sagarana. Acatou as sugestões de Graciliano e suprimiu os contos Bicho mau, Questões de família e Uma história de amor. O primeiro, que narra o caso de um fazendeiro picado por uma cobra venenosa, foi praticamente reescrito e entrou no livro póstumo Estas estórias. Os outros dois permaneceram inéditos.

Os críticos que leram os contos a pedido de ÉPOCA se dividem. “Gostei muito. Graciliano foi severo demais em sua avaliação”, diz Eduardo Coutinho, professor da UFRJ. “Você já encontra uma reflexão filosófica sobre o amor. E a maneira de trabalhar a linguagem é extraordinária.” João Adolfo Hansen, da USP, especialista na obra de Rosa, concorda parcialmente com Graciliano: “O conto do médico (Uma história de amor), acho ruim. Mas talvez Graciliano tenha exagerado em relação ao outro”. Neste, o namoro, que nunca progride, de um rapaz da capital com uma jovem do interior retrata o conservadorismo do Brasil rural do princípio do século XX. “Graciliano era sintético e direto, talvez achasse aquilo uma frescura. Mas é uma tradução de costumes típicos do interior.” Hansen reconhece em ambos os textos um excesso de termos técnicos de mineralogia e medicina. Outra especialista na obra de Rosa, Maria Célia Leonel, da Unesp, diz que os dois textos não têm a mesma elaboração da narrativa e profundidade das outras histórias de Sagarana. “Ele sempre diz alguma outra coisa por trás das histórias que conta. Aqui, parece que ficou tudo na superfície.”


Graciliano morreu em 1953 e não pôde ler outro livro de Rosa. Deixou uma profecia sobre o colega: “Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando meus ossos começarem a esfarelar-se”. Exatamente em 1956, Rosa lançou seu único romance, Grande Sertão: veredas. Com ele, foi alçado ao primeiro escalão da literatura mundial, de onde nunca mais saiu.


O lado B de Sagarana (Foto: ÉPOCA) 

Fonte: revistaepoca.glogo.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário