Em princípios de maio de 2002, uma impressionante comissão de críticos literários de várias partes do mundo escolheu o livro Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), a partir de 1602, como a melhor obra de ficção de todos os tempos. Ao tempo em que narrava os feitos do Cavaleiro da Triste Figura em ritmo dos romances da cavalaria, Cervantes enervado com o sucesso daquele tipo de gênero literário junto ao grande público, realizou uma das maiores sátiras aos preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis de fancaria.
Agonia do cavaleiro da triste figura
O Cavaleiro da Triste Figura e Rocinante |
Erasmo – Elogio da Loucura, 1509
No final de uma caçada às lebres, ele sentiu-se exausto. Pediu que o levassem ao leito. Dom Quixote percebeu a presença da morte. Logo os amigos chamaram um médico que, pegando-lhe o pulso, recomendou com a rude franqueza dos castelhanos que tratasse de salvar a alma, porque o corpo era de pouca valia. Então algo poderoso ocorreu. Aos brados o moribundo disse ter recuperado o juízo, livrara-se das desgraçadas leituras que fizera sobre os feitos dos cavaleiros. Disse abominar Amadis de Gaula, o espadachim de fantasia que tanto o inspirara até não muito. Esperou então, sereno, a morte para livrar-se daquelas assombrações da literatura que tanto infernizaram a sua vida.
Em tempos bem anteriores, ainda que magro de doer, dispunha de saúde suficiente para lançar-se pelo mundo afora. Até os cinqüenta anos vivera com criada, sobrinha e um rapaz arrieiro, numa fazendola na província da Mancha, uma espécie de brejo-seco do Reino de Castela, na Espanha. Desocupado, empobrecido, passara os dias lendo os feitos dos heróis da cavalaria. Até que um dia, conta Cervantes, de tanta leitura, seus miolos ressecaram. Imitando então aquela brava gente que povoava os seus sonhos, cismou em querer consertar as coisa tortas e desfazer os agravos do mundo. Mandou pôr uma sela em Rocinante, seu maltratado pangaré, calçou-se com as velhas armas dos seus antepassados, um escudo, e saiu a trote atrás de façanhas que lhe dessem renome. E como ele próprio esperava:
Em tempos bem anteriores, ainda que magro de doer, dispunha de saúde suficiente para lançar-se pelo mundo afora. Até os cinqüenta anos vivera com criada, sobrinha e um rapaz arrieiro, numa fazendola na província da Mancha, uma espécie de brejo-seco do Reino de Castela, na Espanha. Desocupado, empobrecido, passara os dias lendo os feitos dos heróis da cavalaria. Até que um dia, conta Cervantes, de tanta leitura, seus miolos ressecaram. Imitando então aquela brava gente que povoava os seus sonhos, cismou em querer consertar as coisa tortas e desfazer os agravos do mundo. Mandou pôr uma sela em Rocinante, seu maltratado pangaré, calçou-se com as velhas armas dos seus antepassados, um escudo, e saiu a trote atrás de façanhas que lhe dessem renome. E como ele próprio esperava:
—Dichosa edad y siglo dichoso aquel adonde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse en bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro.
(Feliz idade e feliz século aquele onde sairão à luz as minhas famosas façanhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpidas em mármores e pintadas em telas para a memória do futuro)
(D.Quixote: II Capítulo)
(Feliz idade e feliz século aquele onde sairão à luz as minhas famosas façanhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpidas em mármores e pintadas em telas para a memória do futuro)
(D.Quixote: II Capítulo)
Metido em aventuras mil
Campo de Criptana com seus moinhos, a quem Quixote enfrentou com sua lança |
Maldizia o tempo todo a época que lhe coubera viver. A pólvora e o chumbo, discursou ele, liquidaram com os cavaleiros. Um disparo de longe, arte de um covarde, destroçava a vida de um bravo. Surras “ da fementida canalha”, também não lhe faltaram. Certa vez, em pleno campo, encontrando uma fila de bandidos atados, conduzidos por alguns policiais, resolveu espantar a lei. Engalfinhou-se com os guardas que fugiram espavoridos dos espadaços daquele doido. Soltos, os foras-da-lei, além de surripiarem-lhe os pertences, aplicaram-lhe uma sova de dar dó. Comentário de Dom Quixote: “aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os afligidos, acorrentados e opressos...vão pelas estradas por suas culpas, ou por serem desgraçados... só lhe cabia ajudá-los como necessitados”. Nem na dor das imerecidas porretadas ele se emendava!
Estrutura e prosa da obra
As confusões de Don Quixote (gravura de William Hogarth) |
Numa das suas digressões, Cervantes deu para comparar a vida de soldado, que ele foi, com a de escritor, que ele terminou sendo, concluindo que aquele ofício só lhe dera dor de cabeça, vigílias, vazios de fome e padecimentos mil. Todavia, ao contrário de Shakespeare, seu contemporâneo, era consciente de que criara uma obra-prima, algo verdadeiramente extraordinário. Enquanto isso, numa desconhecida aldeia da Mancha, o corpo do velho fidalgo maluco recebia as exéquias. Não se enganem, não o enterraram não. Basta a qualquer leitor abrir a primeira página do Dom Quixote para ver que, erguendo a espada, o soberbo doido está ali vivíssimo, pronto para sair a assombrar o gigante Briareu e pôr a correr as injustiças.
Voltaire Schilling
Educaterra
Dom Quixote
Dom Quixote
D. Quixote e Sancho Pança (ilustração de Gustave Doré)
Dom Quixote de La Mancha (Don Quijote de la Mancha em
castelhano) é um livro escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra
(1547-1616). O título e ortografia originais eram El ingenioso hidalgo Don Quijote
de La Mancha, com sua primeira edição publicada em Madrid no ano de 1605. É
composto por 126 capítulos, divididos em duas partes: a primeira surgida em
1605 e a outra em 1615.
O livro surgiu em um período de grande inovação e diversidade
por parte dos escritores ficcionistas espanhóis. Parodiou os romances de
cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período e, na altura, já se
encontravam em declínio. Nesta obra, a paródia apresenta uma forma invulgar. O
protagonista, já de certa idade, entrega-se à leitura desses romances, perde o
juízo, acredita que tenham sido historicamente verdadeiros e decide tornar-se
um cavaleiro andante. Por isso, parte pelo mundo e vive o seu próprio romance
de cavalaria. Enquanto narra os feitos do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes
satiriza os preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis de
fancaria. A história é apresentada sob a forma de novela realista.
É considerada a grande criação de Cervantes. O livro é um dos
primeiros das línguas europeias modernas e é considerado por muitos o expoente
máximo da literatura espanhola. Em princípios de maio de 2002, o livro foi
escolhido como a melhor obra de ficção de todos os tempos. A votação foi
organizada pelo Clubes do Livro Noruegueses e participaram escritores de reconhecimento
internacional.
O protagonista da obra é Dom Quixote, um pequeno fidalgo
castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e
pretende imitar seus heróis preferidos. O romance narra as suas aventuras em
companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais
realista. A ação gira em torno das três incursões da dupla por terras de La
Mancha, de Aragão e de Catalunha. Nessas incursões, ele se envolve em uma série
de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela dura realidade. O
efeito é altamente humorístico.
Análise
O livro é estruturado em duas partes, a primeira maneirista,
enquanto a segunda é mais barroca. Enquanto a primeira parte da obra deixa a
impressão de liberdade máxima, a segunda parte produz a sensação constante de
nos encontrarmos encerrados em limites estreitos. Essa sensação é sentida mais
intensamente quando confrontada com a primeira parte. Se anteriormente, a
ironia era, sobretudo, uma expressão amarga da impossibilidade de dar realidade
a um ideal, com a segunda parte nasce muito mais da confrontação das formas da
imaginação com as da realidade. Cervantes dá a sua própria definição da obra:
"orden desordenada (...) de manera que el arte, imitando à la Naturaleza,
parece que allí la vence". O processo adotado por Cervantes - a paródia -
permite dar relevo aos contrastes, através da deformação grotesca, pela
deslocação do patético para o burlesco, fazendo com que o burlesco apague
momentaneamente a emoção, estabelecendo um entrelaçado espontâneo de picaresco,
de burlesco e de emoção. O conflito surge do confronto entre o passado e o
presente, o ideal e o real e o ideal e o social.
Dom Quixote e Sancho Pança representam valores distintos,
embora sejam participantes do mesmo mundo. É importante compreender a visão
irônica que o romancista tem do mundo moderno, o fundo de alegria que está por
detrás da visão melancólica e a busca do absoluto. São mundos completamente
diferentes. Sancho Pança o fiel escudeiro de Dom Quixote é definido por
Cervantes como "Homem de bem, mas de pouco sal na moleirinha". É o
representante do bom senso e é para o mundo real aquilo que Dom Quixote é para
o mundo ideal. Por fim, a história também é apresentada sob a forma de novela
realista: ao regressar a seu povoado, Dom Quixote percebe que não é um herói,
mas que não há heróis.
Interpretações e
influências
As figuras de D. Quixote, de Sancho Pança e do cavalo de Dom Quixote,
Rocinante, rapidamente conquistaram a imaginação popular. No entanto, os
críticos contemporâneos da obra não a levaram tão a sério como as gerações
posteriores. No século XVII, por exemplo, considerou-se que o romance continha
em si pouco mais que o tom de bom humor e de diversão, com Dom Quixote e Sancho
Pança a encarnarem respectivamente o grotesco e o pícaro. O século XVIII foi
pródigo em elogios a D. Quixote, não só na Espanha e em Portugal, como também
por parte de grandes românticos do centro da Europa.
Na história do romance moderno, o papel de Dom Quixote é
reconhecido como seminal. A evidência disso pode ser vista em Daniel Defoe, em
Henry Fielding, em Tobias Smollett e Laurence Sterne e, também, em personagens
criadas por alguns romancistas clássicos do século XIX, como é o caso de Walter
Scott, de Charles Dickens, de Gustave Flaubert, de Benito Pérez Galdós, de
Herman Melville e de Fiódor Dostoiévski. O mesmo acontece no caso de alguns
autores pós-realistas do século XX, como James Joyce e Jorge Luis Borges. Dom
Quixote provou ser uma notável fonte de inspiração para os criadores em outros
campos artísticos. Desde o século XVII que se têm realizado peças de teatro,
óperas, composições musicais e bailados baseados no Dom Quixote. No século XX,
o cinema, a televisão e os cartoons inspiraram-se igualmente nesta obra. Dom
Quixote inspirou ainda artistas como William Hogarth, Francisco Goya, Honoré
Daumier e Pablo Picasso.
Wikipédia
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