quarta-feira, 8 de maio de 2013

São Francisco, o Cristo de Assis


As obras de restauração da Basílica de São Francisco, imensamente abalada por um terremoto ocorrido em 26 de setembro de 1997, que destruiu parte considerável do riquíssimo acervo artístico do santuário erguido no século 13, já estão concluídas.
Mobilizando o gênio artístico nacional, restauradores italianos trabalharam noite e dia para recompor na sua plenitude o antigo esplendor do tempo.
Desde que Cristo padeceu no Calvário, a Pobreza, tal como uma viúva enjeitada, voltou a vagar pelo mundo até que, 12 séculos depois da morte do Salvador, surgiu Francisco Bernardone.
Nascido em Assis, na Úmbria, em 1186, em meio a uma família burguesa (seu pai era um próspero negociante de tecidos), o jovem Francisco, com pouco mais de 20 anos, repudiando a sua prometida, a bela Fortuna, e "tomando o amargo como doce", deu seu braço e seu coração a outra, para desgosto dos parentes. Esposou, em 1205, depois de ter promovido escandaloso ato público, a Pobreza. Era uma triste e horrenda noiva, esquálida, famélica e meio endoidecida pelas necessidades. Retornava o nubente ao primitivo ideal cristão da paupertas voluntas, à pobreza voluntária, que tanto Cristo recomendava aos seus.

Francisco funda a ordem

Afugentou-se então, em lua-de-fel com sua andrajosa noiva, para o campo, onde se pôs a restaurar a igrejinha de Santa Maria degli Angeli, acompanhado de Bernardo, Silvestre, Egídio e Clara, morando em cavernas (il carceri), entregando-se a um severo ascetismo, mantido a pão seco e goles d'água. Não demorou para que o povo do local o chamasse de il poverello (o pobre homem).
A notícia que ele abdicara de um lar abonado para formar uma nova ordem de monges mendicantes, voltada aos pobres, comoveu a todos. É, para nós do século 21, difícil estimar o impacto que Francisco Bernardone, o São Francisco de Assis, causou no meio rural daquela época.
Sabe-se avassalador. Bastou um ano, de 1208 a 1209 (data do começo da sua pregação a favor de uma retomada radical da vida cristã) para que o papa Inocêncio III o reconhecesse como um líder da renovação da fé. Atitude hábil do pontífice porque os franciscanos tornaram-se os catalisadores de um movimento carismático que atraiu os deserdados e flagelados da área rural italiana. Sensibilizaram igualmente um número significativo de intelectuais, como Petrarca, que, ainda que um século depois, viu naquele movimento uma similitude com o estoicismo clássico.
Francisco, apenas com seu exemplo, de imitator Christi, calçando sandálias e com o hábito de um servo, com uma corda na cintura, metido em terríveis jejuns, constrangia e embaraçava o fausto bizantino da Cúria romana.

Um Cristo italiano

Alguns historiadores arriscam-se a especular que o franciscanismo serviu ao povo cristão como uma consolação psicológica à perda de Jerusalém, que voltara a cair, em 1187, em "mãos ímpias" quando Saladino reconquistou-a para o Islã.
O Santo passou a ser visto, depois do fracasso da 3ª Cruzada, como um Jesus renascido e mais próximo ao popolo minuto. Cercado pelo misticismo que desencadeara, Francisco assumira a identidade do Filho de Deus, de um Cristo italiano, de um Cristo de Assis. A tal ponto que as chagas - os estigmas do Crucificado - nele também apareceram, como, segundo a lenda, se verificou na Quaresma de 1224, em seu retiro no Monte Alverno, "entre o Arno e o Tibre alçado", como localizou Dante.

Assis a nova Jerusalém
Sua ternura, o paciencioso trato com os infelizes, a dedicação aos pássaros e seres silvestres, o culto à Natureza e à simplicidade, tornaram-no um Rousseau medieval, um ecologista do seu tempo. Fez da Úmbria uma nova Terra Santa, e da Basílica de Assis um santuário de peregrinação. Enquanto a sua primeira tumba, a da Igreja de San Giorgio, onde o inumaram em 1226, noutro Santo Sepulcro.
Sua presença, no transcorrer do século 13, foi tão impressionante que quando Dante resumiu sua vida no Paraíso (Cantos, XI e XII), o fez por um relato do sumo sapiente São Tomás de Aquino.
São Francisco, como observou Auerbach, é o grande silencioso que inunda os Cantos do florentino com sua poderosa presença. Apesar de Dante criticar seus seguidores - "sua grei tornou-se cobiçosa de outro alimento"-, o ferino poeta preservou-o. Giotto, por sua vez, num painel célebre, reproduziu o lendário sonho que o papa Inocêncio III tivera, onde São Francisco aparece como o sustentáculo de um Igreja que estava caída.
O grande homem santo foi canonizado dois anos após a sua morte, em 16 de julho de 1228, por Gregório IX. Quase em seguida foram lançados os fundamentos da Basílica de Assis, obra que se arrastou por mais de 70 anos, até que, no pontificado de Nicolau IV (um franciscano chamado Girolamo de Ascoli), entre 1288 e 1292, a maior parte dos trabalhos foram dados por concluídos.
As paredes internas da Basílica serviram para que grandes artistas, como o romano Jacobo Torritti e o florentinos Cimabue e Giotto, utilizassem-nas para exercerem seus experimentos com a tridimensionalidade, fazendo dos afrescos que lá pintaram um exercício de ilusionismo e de cinética que, posteriormente seria levado às últimas consequências pelos grandes mestres da Renascença.
Transcorridos sete séculos da sua morte, em setembro de 1997, um miserável terremoto, enviado pelo pagão Vulcano, tentou inutilmente abalar o grande edifício em Assim, a Basílica onde repousam os restos do Santo. Sacudiu-o, mas não o destruiu.
E o que foi feito da Pobreza? Bem, esta, como se sabe, desde então voltou a enviuvar até que um novo papa, o arcebispo argentino Jorge Mario Bergoglio, decidiu-se por lhe restaurar a importância, voltando a desposá-la.


Imagem
São Francisco de Assis, um santo ecologista
Foto: Getty Images

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