Guimarães Rosa e Graciano Ramos
As obras do escritor alagoano
Graciliano Ramos e do mineiro João Guimarães Rosa têm pouco em comum. Seus
estilos são antagônicos. O primeiro é árido, contido, realista. O segundo,
prolixo, místico, quase barroco. Os escritores também tiveram pouco contato.
Isso não impediu que Graciliano, autor do clássico Vidas secas, alterasse os
rumos da carreira de Guimarães Rosa.
Homenageado da Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip) deste ano, que começa nesta semana, Graciliano
(1892-1953) foi jurado de um concurso literário da editora José Olympio, em
1938. Um dos candidatos era o livro Contos, assinado por Viator. Por trás do
pseudônimo, estava Guimarães Rosa (1908-1967), até ali um desconhecido médico
mineiro. Graciliano achou seu conteúdo desigual, com alguns contos excelentes e
outros “ordinários”. Convenceu o júri a não agraciar a obra com o prêmio. A
vitória ficou nas mãos de Luís Jardim e seu livro Maria Perigosa, obra
desconhecida e absolutamente apagada na história da literatura brasileira.
Quando o livro de Rosa finalmente chegou ao público, oito anos depois, com o
nome de Sagarana, estava mais enxuto, sem três contos da versão inicial. Eram
justamente os contos que Graciliano criticara. Rosa chegou a reescrever um
deles, publicado posteriormente. Os outros dois, até hoje inéditos, estão
preservados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(USP). ÉPOCA submeteu os dois contos a três críticos literários para avaliar a
opinião de Graciliano. Os textos serão publicados neste ano, num portal que a
editora Nova Fronteira prepara sobre Guimarães Rosa.
O júri de 1938 reunia cinco
escritores. Na ocasião, Graciliano explicou sua posição: “Votei contra esse
livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me pareceram bastante
ordinários. (...) Esses dois contos e algumas páginas campanudas, entre elas
uma que cheira a propaganda de soro antiofídico, me deram arrepio”. Rosa não
era exatamente um novato. Anos antes, publicara na revista O Cruzeiro contos de
suspense, se aventurara pela poesia e escrevera o livro Magma, que não publicou
enquanto vivo. Somente com Sagarana, iniciado aos 29 anos, encontrou seu
estilo. Eram contos passados no interior de Minas Gerais, que dialogavam com a
literatura e a filosofia clássicas. Após o concurso, Viator desapareceu sem
revelar sua identidade. Aos pais, falava do carinho que tinha por esse primeiro
livro. “Era o favorito do meu pai, porque era o primeiro e porque foi um
sobrevivente”, diz a filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa.
Como funcionário do Itamaraty,
Rosa foi trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha. Os
originais de Sagarana ficaram no Brasil com sua primeira mulher, Lygia. Ela
tentou levá-los à Alemanha, mas, com a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro
proibiu que mulheres e filhos de diplomatas viajassem. Numa noite de 1941, Rosa
estava em Hamburgo e acordou com vontade de fumar. Não tinha cigarros em casa.
Foi até a loja da esquina, quando soou o alarme alertando para um ataque aéreo
iminente. Rosa conseguiu correr para um abrigo, onde passou a madrugada. Ao
amanhecer, viu que seu prédio fora bombardeado. Ele fora salvo por causa do
cigarro, e Sagarana, caso estivesse no apartamento, teria sido destruído. “Meu
pai adquiriu, a partir desse incidente, um sentimento místico que influenciou
sua obra”, diz Vilma.
No final de 1944, Rosa conheceu
Graciliano Ramos. Revelou ser o autor derrotado no concurso e não demonstrou
ressentimentos. Em 1946, lançou Sagarana. Acatou as sugestões de Graciliano e
suprimiu os contos Bicho mau, Questões de família e Uma história de amor. O
primeiro, que narra o caso de um fazendeiro picado por uma cobra venenosa, foi
praticamente reescrito e entrou no livro póstumo Estas estórias. Os outros dois
permaneceram inéditos.
Os críticos que leram os contos a
pedido de ÉPOCA se dividem. “Gostei muito. Graciliano foi severo demais em sua
avaliação”, diz Eduardo Coutinho, professor da UFRJ. “Você já encontra uma
reflexão filosófica sobre o amor. E a maneira de trabalhar a linguagem é
extraordinária.” João Adolfo Hansen, da USP, especialista na obra de Rosa,
concorda parcialmente com Graciliano: “O conto do médico (Uma história de
amor), acho ruim. Mas talvez Graciliano tenha exagerado em relação ao outro”.
Neste, o namoro, que nunca progride, de um rapaz da capital com uma jovem do
interior retrata o conservadorismo do Brasil rural do princípio do século XX.
“Graciliano era sintético e direto, talvez achasse aquilo uma frescura. Mas é
uma tradução de costumes típicos do interior.” Hansen reconhece em ambos os
textos um excesso de termos técnicos de mineralogia e medicina. Outra
especialista na obra de Rosa, Maria Célia Leonel, da Unesp, diz que os dois
textos não têm a mesma elaboração da narrativa e profundidade das outras histórias
de Sagarana. “Ele sempre diz alguma outra coisa por trás das histórias que
conta. Aqui, parece que ficou tudo na superfície.”
Graciliano morreu em 1953 e não
pôde ler outro livro de Rosa. Deixou uma profecia sobre o colega: “Certamente
ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará
pronto em 1956, quando meus ossos começarem a esfarelar-se”. Exatamente em
1956, Rosa lançou seu único romance, Grande Sertão: veredas. Com ele, foi
alçado ao primeiro escalão da literatura mundial, de onde nunca mais saiu.
Fonte: revistaepoca.glogo.com
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