As obras de restauração da
Basílica de São Francisco, imensamente abalada por um terremoto ocorrido em 26
de setembro de 1997, que destruiu parte considerável do riquíssimo acervo
artístico do santuário erguido no século 13, já estão concluídas.
Mobilizando o gênio artístico
nacional, restauradores italianos trabalharam noite e dia para recompor na sua
plenitude o antigo esplendor do tempo.
Desde que Cristo padeceu no
Calvário, a Pobreza, tal como uma viúva enjeitada, voltou a vagar pelo mundo
até que, 12 séculos depois da morte do Salvador, surgiu Francisco Bernardone.
Nascido em Assis, na Úmbria, em
1186, em meio a uma família burguesa (seu pai era um próspero negociante de
tecidos), o jovem Francisco, com pouco mais de 20 anos, repudiando a sua
prometida, a bela Fortuna, e "tomando o amargo como doce", deu seu
braço e seu coração a outra, para desgosto dos parentes. Esposou, em 1205,
depois de ter promovido escandaloso ato público, a Pobreza. Era uma triste e
horrenda noiva, esquálida, famélica e meio endoidecida pelas necessidades.
Retornava o nubente ao primitivo ideal cristão da paupertas voluntas, à pobreza
voluntária, que tanto Cristo recomendava aos seus.
Francisco funda a ordem
Afugentou-se então, em lua-de-fel
com sua andrajosa noiva, para o campo, onde se pôs a restaurar a igrejinha de
Santa Maria degli Angeli, acompanhado de Bernardo, Silvestre, Egídio e Clara,
morando em cavernas (il carceri), entregando-se a um severo ascetismo, mantido
a pão seco e goles d'água. Não demorou para que o povo do local o chamasse de
il poverello (o pobre homem).
A notícia que ele abdicara de um
lar abonado para formar uma nova ordem de monges mendicantes, voltada aos
pobres, comoveu a todos. É, para nós do século 21, difícil estimar o impacto
que Francisco Bernardone, o São Francisco de Assis, causou no meio rural
daquela época.
Sabe-se avassalador. Bastou um
ano, de 1208 a 1209 (data do começo da sua pregação a favor de uma retomada
radical da vida cristã) para que o papa Inocêncio III o reconhecesse como um
líder da renovação da fé. Atitude hábil do pontífice porque os franciscanos tornaram-se
os catalisadores de um movimento carismático que atraiu os deserdados e
flagelados da área rural italiana. Sensibilizaram igualmente um número
significativo de intelectuais, como Petrarca, que, ainda que um século depois,
viu naquele movimento uma similitude com o estoicismo clássico.
Francisco, apenas com seu
exemplo, de imitator Christi, calçando sandálias e com o hábito de um servo,
com uma corda na cintura, metido em terríveis jejuns, constrangia e embaraçava
o fausto bizantino da Cúria romana.
Um Cristo italiano
Alguns historiadores arriscam-se
a especular que o franciscanismo serviu ao povo cristão como uma consolação
psicológica à perda de Jerusalém, que voltara a cair, em 1187, em "mãos
ímpias" quando Saladino reconquistou-a para o Islã.
O Santo passou a ser visto,
depois do fracasso da 3ª Cruzada, como um Jesus renascido e mais próximo ao
popolo minuto. Cercado pelo misticismo que desencadeara, Francisco assumira a
identidade do Filho de Deus, de um Cristo italiano, de um Cristo de Assis. A
tal ponto que as chagas - os estigmas do Crucificado - nele também apareceram,
como, segundo a lenda, se verificou na Quaresma de 1224, em seu retiro no Monte
Alverno, "entre o Arno e o Tibre alçado", como localizou Dante.
Assis a nova Jerusalém
Sua ternura, o paciencioso trato
com os infelizes, a dedicação aos pássaros e seres silvestres, o culto à
Natureza e à simplicidade, tornaram-no um Rousseau medieval, um ecologista do
seu tempo. Fez da Úmbria uma nova Terra Santa, e da Basílica de Assis um
santuário de peregrinação. Enquanto a sua primeira tumba, a da Igreja de San
Giorgio, onde o inumaram em 1226, noutro Santo Sepulcro.
Sua presença, no transcorrer do século
13, foi tão impressionante que quando Dante resumiu sua vida no Paraíso
(Cantos, XI e XII), o fez por um relato do sumo sapiente São Tomás de Aquino.
São Francisco, como observou
Auerbach, é o grande silencioso que inunda os Cantos do florentino com sua
poderosa presença. Apesar de Dante criticar seus seguidores - "sua grei
tornou-se cobiçosa de outro alimento"-, o ferino poeta preservou-o.
Giotto, por sua vez, num painel célebre, reproduziu o lendário sonho que o papa
Inocêncio III tivera, onde São Francisco aparece como o sustentáculo de um
Igreja que estava caída.
O grande homem santo foi
canonizado dois anos após a sua morte, em 16 de julho de 1228, por Gregório IX.
Quase em seguida foram lançados os fundamentos da Basílica de Assis, obra que
se arrastou por mais de 70 anos, até que, no pontificado de Nicolau IV (um
franciscano chamado Girolamo de Ascoli), entre 1288 e 1292, a maior parte dos
trabalhos foram dados por concluídos.
As paredes internas da Basílica
serviram para que grandes artistas, como o romano Jacobo Torritti e o
florentinos Cimabue e Giotto, utilizassem-nas para exercerem seus experimentos
com a tridimensionalidade, fazendo dos afrescos que lá pintaram um exercício de
ilusionismo e de cinética que, posteriormente seria levado às últimas
consequências pelos grandes mestres da Renascença.
Transcorridos sete séculos da sua
morte, em setembro de 1997, um miserável terremoto, enviado pelo pagão Vulcano,
tentou inutilmente abalar o grande edifício em Assim, a Basílica onde repousam
os restos do Santo. Sacudiu-o, mas não o destruiu.
E o que foi feito da Pobreza?
Bem, esta, como se sabe, desde então voltou a enviuvar até que um novo papa, o
arcebispo argentino Jorge Mario Bergoglio, decidiu-se por lhe restaurar a
importância, voltando a desposá-la.
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